MIGUEL TORGA: "ELA NASCEU PÓSTUMA"

Natália Correia foi desses seres que chegam adiantados no tempo, vindos do futuro para no-lo antecipar. Miguel Torga dizia que ela nasceu póstuma. A excepcionalidade de Natália Correia não lhe permitiu, por isso, caber nas normas, nas ideologias, nas culturas, nas religiões, nos sentimentos que a envolviam - e que logo ela extravasou, inovou.

Daí as incompreensões, os desajustamentos sofridos toda a vida. Incompreensões e desajustamentos motivados por um certo anedotário gerado à sua volta - de que ela foi co-responsável por poses, exotismos que a cracterizavam. Reconhecendo-o, afirmará "falar-se muito da minha personalidade, transformando-a num espectáculo para abafar a minha obra" FD

ODE À PAZ EM TEMPO DE GUERRAS

Natália Correia 13 de Set 1923—16 de Mar 1993


Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,

Pelas aves que voam no olhar de uma criança, Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,

Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança, Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia, Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos, 

Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria, Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes, 

Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos, 

Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes, 

Pelos aromas maduros de suaves outonos, 

Pela futura manhã dos grandes transparentes, 

Pelas entranhas maternas e fecundas da terra, 

Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra, 

Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna, Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz. 

Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira, Com o teu esconjuro da bomba e do algoz, Abre as portas da História, deixa passar a Vida!                      

Natália Correia

Imprensa em queda, Telemóveis em alta


Foram comprados mais de 4 telemóveis por minuto no ano passado (2024) revelou o vice-presidente da divisão de telemóveis da IDC Europa, Francisco Jerónimo.

Mais de 46 em cada 100 portugueses têm 2 telemóveis, segundo sondagem da Multidados: são mais 15 milhões de telemóveis.

Ou seja quase metade dos portugueses já têm dois telemóveis para consultar mensagens, jogar (horas a fio) e ler (pouco) noticias ou ouvir comentários. Quase todos os telemóveis têm écrans grandes.

Na Imprensa, por dia, o Correio da Manhã vende 39 mil exemplares E Sse o Jornal de Noticias tem uma quota de 23% de mercado, com 14 859 exemplares, o Público, com uma quota de 7% vende 9 mil exemplares. Com o desaparecimento da Imprensa morre a Democracia. 



Coragem galvanizadora

Aceradamente crítica com os que manipulavam a conquista do poder – como sucedeu nos abrasados meses de 1975 – Natália Correia seria, então, de uma coragem galvanizadora, recusando (com Miguel Torga, David Mourão-Ferreira, António José Saraiva e poucos mais) aceitar ditaduras de outras paletas. Nunca ninguém me controlou", exclamava, "nem antes nem depois do 25 de Abril, que totalitaristas existem em todos os regimes, e opositores a eles também. 

Mas não sou nenhuma dessas vítimas profissionais do fascismo e da PIDE, repugna-me, aliás, que se cobre pelas opções feitas, fazem-se, assumem-se, pronto! 

A longa noite do fascismo não foi para mim nenhuma longa noite porque não deixei que o fosse, pessoalmente até me diverti bastantenela... as pessoas que pertencem ao mundo da cultura resistem a deixar-se manipular, por isso é que ela, cultura, é tão combatida, tão iludida, à direita e à esquerda, por todos os poderes".    Fernando Dacosta

Uma só voz de inumeráveis bocas?

De Eva a mulher astronauta, vivo todas as idades,

um fausto de lua lauta, no brilho das brevidades.


Canta-me um louco na pauta, demónios e divindades,

compartilham essa flauta, das minhas variedades.

Ó universo inventado, de noutros me perceber.

Tanto tempo utilizado, numa manhã por nascer!


Sujeitos a estranhas leis, com a sua loucura a sós

solitários como os reis, os poetas dizem: nós.

E pela mesma magia, que ainda ninguém entendeu,

no côncavo da poesia,um deus que falta diz: eu.

Palavras de Natália Correia

Poemas de Natália Correia


O POEMA


O poema não é o canto
que do grilo para a rosa cresce.
O poema é o grilo
é a rosa
e é aquilo que cresce.

E o pensamento que exclui
uma determinação
na fonte donde ele flui
e naquilo que descreve.

O poema não é o canto
que do grilo para a rosa cresce.

O poema é o grilo
é a rosa
e é aquilo que cresce.

E o pensamento que exclui
uma determinação
na fonte donde ele flui
e naquilo que descreve.
O poema é o que no homem
para lá do homem se atreve.

Os acontecimentos são pedras
e a poesia transcendê-las
na já longínqua noção
de descrevê-las.

E essa própria noção é só
uma saudade que se desvanece
na poesia. Pura intenção
de cantar o que não conhece.


Natália Correia: um conto para me embalar


Fiz um conto para me embalar



Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.

Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.

Rosas fatais, as três donzelas
A mão de espuma as desfolhou.
Nenhum soube para qual delas
O príncipe do mar cantou.

Um conto para me embalar

A outro poema para além de um conto pata embalarr 

Auto-retrato



Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.

Queixa das almas jovens censuradas

Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo



Temos fantasmas tão educados

que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho

pra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça

e uma cabeça presa à cintura

para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte

Natália Correia

Mário Vargas Llosa

O genial Nobel dono de uma off-shore

Mário Vargas Llosa, prémio Nobel em 2010, partiu. Já não está em Cochabamba, Barranco ou Paris, nem na sua escrivaninha. Tão pouco na off-shore na Ilhas Virgens, descoberta em 2021, no Pandora Papers.
Muitos livros de Llosa são autobiográficos e neles se reflete a sua extraordinária e controversa história de vida. Foi admirador confesso de Fidel de Castro e mais tarde candidato, em 1991, a presidente do Peru numa coligação de centro-direita.
Mário Vargas Llosa partiu aos 89 anos, em Lima, Peru. Agora lá iremos na corrida à leitura dos seus livros; e sempre com um lamento "teria sido tão bom estar à conversa com este genial Nobel", que Espanha presenteou com o título de marquês

Senhores juízes  sou um poeta

Senhores juízes sou um poeta

um multipétalo uivo um defeito

e ando com uma camisa de vento

ao contrário do esqueleto.

Sou o vestíbulo do impossível um lápis

de armazenado espanto e por fim

com a paciência dos versos

espero viver dentro de mim.


Sou em código o azul de todos

(curtido couro de cicatrizes)

uma avaria cantante

na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade

o vosso enfarte serei

não há cidade sem o parque

do sono que vos roubei.


Senhores professores que pusestes

a prémio minha rara edição

de raptar-me em crianças que salvo

do incêndio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho

de em pó volverdes sois os reis

sou um poeta jogo-me aos dados

ganho as paisagens que não verei.

Senhores heróis até aos dentes

puro exercício de ninguém

minha cobardia é esperar-vos

umas estrofes mais além.


Senhores três quatro cinco e sete

que medo vos pôs por ordem?

que pavor fechou o leque

da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais

a pena na tinta da natureza

não apedrejeis meu pássaro

sem que ele cante minha defesa.


Sou um instantâneo das coisas

apanhadas em delito de paixão

a raiz quadrada da flor

que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta

de um verso onde o possa escrever.

Ó subalimentados do sonho!

a poesia é para comer.

Natália Correia

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As palavras densas ora gelam ora incendeiam, não são cinzas. Por perigosas, certos poderes querem que elas percam futuro, definhem em jornais, livros, teatros, pensamentos

Ler implica esforços, lucidez, daí a sua conveniente desvalorização, o repetir-se que uma imagem vale mil palavras quando o contrário é igualmente verdadeiro: quantas mil imagens são necessárias para uma palavra só, como saudade?

Última trincheira da liberdade individual, porque visceralmente autónoma e intemporal, a escrita tornou-se difusora privilegiada de ideias, memórias, inovações, documentando cada época tal como, no concreto, muito do nela edificado. 

As suas palavras podem revelar-se tão sólidas como as pedras, a literatura tão duradoura como a arquitectura. 

Apesar disso (talvez por isso) ela, literatura, foi varrida pelos actuais órgãos de comunicação, ignorada pelos poderes, usurpada pelo fisco, infantilizada pelo ensino.

Ora o primeiro afloramento civilizacional que projectou Portugal além fronteiras, lembrava Fernando Pessoa, foi de natureza literária (poemas do Cancioneiro e crónicas de cavalaria), não militar, não comercial, não religiosa. Os nossos maiores génios, Camões e Pessoa, são poetas – universais.

A grande literatura pertence ao domínio do sagrado, não do super mercado, provocava outro génio, também poeta: Natália Correia.

F. D.

UM JIPE EM SEGUNDA MÃO

Há 50 nos, fá-los agora, uma peça de teatro sobre a guerra colonial, intitulada "Um Jipe em Segunda Mão", conquistava o Grande Prémio de Teatro RTP. Alguns especialistas (Amélia Rey Colaço, Luiz Francisco Rebello, Jorge Listopad, Carlos Avilez, Isabel da Nóbrega, Silvina Pereira) consideraram-na o melhor texto dramático existente sobre aquele tema. Amélia Rey Colaço, membro do júri que a distinguiu, afirmaria ao Diário de Notícias tratar-se de uma "pequena obra prima da dramaturgia portuguesa".

Com receio de incomodar militares e católicos, entre outros, o projecto foi, então, metido na gaveta durante mais de 10 anos. Diversos grupos cénicos, de diversos pontos do País, representaram-no, entretanto, com destaque para o Teatro Maizum dirigido por Silvina Pereira, numa notável encenação de Adolfo Gutkin e envolvente cenografia de José Manuel Castanheira. Presente, o marechal Francisco Costa Gomes aplaudiu essa estreia.

Carlos Pinto Coelho, quando director de programas da estação, resgatou a peça e incumbiu o realizador Jaime Campos de a filmar, o que este fez reunindo, em elenco excepcional, Eunice Muñoz, Sérgio Godinho, Orlando Costa, Antonino Solmer e António Rama. O filme seria (posterior e discretamente) transmitido no Segundo Canal, de madrugada – e depositado depois nos arquivos da RTP - RTP que nunca o incluiu nas, por exemplo, até hoje 51 evocações da Revolução.

É essa gravação que o Botequim, por cedência dos actuais dirigentes da referida emissora, se oferece no link junto.