ARRANCAR CRISTO DA CRUZ

Jesus na cruz entre os dois ladrões.1619-1620. Por Rubens, atualmente no Museu Real de Belas Artes de Antuérpia, na Bélgica

Crianças imploram por comida na Faixa de Gaza, bombardeada diariamente por Israel 

Festeja-se mais uma vez a crucificação e a ressurreição de Cristo, estranho ritual de sofrimento e júbilo; sofrimento por Ele ter sido pregado num madeiro entre dois ladrões, um dos quais bom ladrão (?), júbilo por voltar à vida horas depois – redimindo-nos

Entremear pavores e suplícios com alegrias e esperanças são, sabe-se, elementos de domínio não muito sofisticados

Vai para dois mil anos que milhares de fiéis da Igreja de Roma cumprem, sem grandes alterações, a chamada Semana Santa, erguendo vestes negras numa sexta feira (o tempo da imolação, seguido do Enterro do Senhor) e brancas no domingo seguinte, o tempo do renascimento. É uma das encenações da liturgia católica mais envolventes e comoventes.

A sangrar para temor dos humanos

A figura de Jesus Cristo, cruzado nu na cruz, contagia ao despojamento, à resignação, tornando-se um símbolo do sagrado que pode habitar em nós, pelo que não se deve permitir fazerem-no alibi de interesses chãos.

"Devemos unirmo-nos", escreve Natália Correia em o Armistício, longo poema de amor e exultação, "unirmo-nos e subir ao monte, e arrancar Jesus da Cruz onde O mantêm há

milénios, a sangrar, para temor dos humanos. E traze-Lo, depois, para o nosso seio pois Ele é o deus mais humano de todos os que inventámos.

É tempo de cantar aleluias, não de carregar penitências. Continuarmos a consentir no Seu sacrifício é consentirmos, interiorizarmos o holocausto, todos os holocaustos, nuclear, demográfico, ambiental, racista, colonialista, é consentir, interiorizar discriminações, esclavagismos, massacres, genocídios".

Obsessão em atender a estranhos

Colocando a liberdade e o amor como valores supremos, Jesus não exerceu empregos, não frequentou escolas, não casou, não procriou, não votou, não pagou impostos, não fez tropa, não segregou prostitutas, nem homossexuais, nem pretos, nem deficientes, nem velhos, preocupando-se mais com os outros do que com os seus.

Marcus, apóstolo céptico, revelou (Capítulo XIII, Evangelho Apócrifo) que "a família de Jesus quis interná-Lo, tal a Sua obsessão em atender estranhos, o que O levava a distanciar-se dela, afastando a mãe e os irmãos, e todos os que acreditavam Nele".

Patriarca russo benze carnificinas

O não atendermos, por indiferença, ao que se passa hoje à nossa volta, como na Ucrânia, em Gaza, pelo que se deu no 7 de Outubro em Israel, pela tragédia dos afogados no Mediterrâneo, dos expulsos dos Estados Unidos e da Europa é intolerável numa civilização ciosa de religiões, de santos, de igrejas, de dogmas cultuados com farisaica violência e escassa solidariedade.

Veja-se como o patriarca dos ortodoxos russos benze as carnificinas do Putin, como o líder da Casa Branca branqueia os executivos do Kremelin e de Tel Avive, como as esquerdas encobrem as infâmias do dito Hamas, como, como…

O ser humano só será valorizado quando escassear

O perigo do holocausto populacional, provocado pelo excesso de gente no planeta, éaterrorizante. Francisco Costa Gomes, marechal, confessava no Botequim "recear mais a explosão demográfica do que a nuclear". O Papa Francisco advertia, por sua vez, que nem todos os casais devem, por falta de condições, procriar.

O ser humano só será valorizado quando escassear, quando se ultrapassarem as mentalidades "formigueiras e coelheiras" que, na colorida expressão de Natália Correia, nos sufocam. 

Aspergidas por sacerdotes da moral, da produtividade, da guerra, da informação, do correcto, propagandeiam-se urgências de mais, mais nascimentos apesar de saber-se que o planeta rebenta de gente, de poluição dela, de destruição da natureza, insaciáveis que continuamos de mão de obra barata e farta, de carne fresca para canhões e camas, de almas frágeis para redis e subserviências.

O planeta soçobra de corpos vivos, e mortos, e apodrecidos, e cremados, tenta vomitá-los, mas eles continuam a encharcá-lo, a degradá-lo – até ele se vingar. 

"Há cada vez mais pessoas a viver bem no mal e mal no bem, a depreciarem o superior, a exultarem o aviltante. Não podemos perder, como está a acontecer, Jesus Cristo!", desalentava-se a autora de "As Núpcias".

Fernando Dacosta

É surpreendente o à vontade com que certos instalados falam, e decidem, sobre a obrigação dos jovens em defendê-los, defende-los a si, aos seus interesses, às suas ideologias, às suas consciências. 

Veja-se a insensibilidade de alguns (algumas) a comentarem nas tvs estratégias de guerras em curso.

O normalizar os jovens no matar, no serem mortos, estropiados, usados não parece estremece-los; são apenas danos colaterais, dizem – e há quem o diga a sorrir.

Empedernidos por egoísmos e subterfúgios, manipulações e coacções, dispomos dos outros, incluindo os filhos, como objectos sem vontade, sem sentimentos, sem angústias, sem vida. 

Imolados, afastamo-los, viris, entre hipocrisias, entre medalhas - até à próxima, mais carnívora e brutal, guerra espectáculo.

Aspergido por igrejas, ideologias, culturas, o filicídio encenou-se, acreditou-se altruísmo. 

Os longos subterfúgios costumam, porém, significar curtas leituras, curtas memórias. 

Daí esquecermos que, às vezes, as vítimas, recusando sê-lo, se viram aos algozes e, ou os aniquilam, ou os substituem. Depois tudo volta, convencionalmente, conformadamente ao mesmo.  

Fernando Dacosta 


CAMÕES SUBVERSOR

Jorge de Sena foi, entre nós, quem melhor compreendeu Camões - o que não tem sucedido com alguns dos biógrafos e divulgadores da sua obra. Por interesses, por ingenuidades, por preconceitos engendraram-se à volta do poeta lendas estapafúrdias (devasso, brigão, machista, imperialista, bajulador - o que em certas alturas foi), desvalorizando a sua profunda cultura, cultura caldeada pelos clássicos, pelos marginalizados, pelos subversores, pelos sofredores.

Ousadíssimo, Luis Vaz assumiu nos sonetos alturas únicas entre nós, como nos dedicados ao jovem 

D. Manuel de Noronha ('Alma minha

 gentil quepartiste..."), morto no norte de África, e de quem fora preceptor; em época de Inquisição incluiu nos Lusíadas o episódio da Ilha dos Amores, hino à liberdade, à sensualidade, de um paganismo fracturante; em fase de delírio nacionalista criou a personagem do Velho do Restelo, voz dos que (ele próprio) avisavam ser problemática a expansão aberta pelo Descobrimentos.

Os colonialistas, se não se retiram a tempo, acabam expulsos e colonizados. Viu-se.          

Fernando Dacosta

Mandar os velhos para as montanhas?

A escolha, pelo Bloco de Esquerda, de alguns dos seus principais fundadores , Francisco Louçã,

Luís Fazenda, Fernando Rosas, como cabeças de listas nas próximas eleições está a provocar crítica enxovalhantes por  parte de vários comentadores. Não por questões ideológicas (naturais) mas por preconceitos (lamentáveis) de idade. 

A despromoção, a discriminação dos idosos volta, assim, a ser legitimada, fomentada por posturas de crescentes retrocessos culturais e sociais.

Ora "o envelhecimento biológico não significa só por si diminuição de capacidades", sublinhava o prof. Almerindo Lessa, um dos mais notáveis gerontologistas portugueses, "significa apenas, se não houver doenças graves, um abrandamento na velocidade do raciocínio, como quando num automóvel passamos da quinta para a quarta velocidade". 

Até porque ele proporciona patrimónios de vivências, de conhecimentos valiosíssimos, verdadeiramente únicos; até porque hoje envelhece-se menos e mais devagar. 

A maior parte dos inventos patenteados são, note-se, de pessoas idosas. José Saramago ganhou, octogenário, o Nobel , Manoel de Oliveira filmou, centenário, obras de referência. 

É estranha, por isso, a obrigatoriedade de impor reformas a partir dos 70 anos, sobretudo a profissionais altamente especializados, em plena forma física e intelectual; igualmente estranho é ver a idade ser transformada em arremeço contra políticos - fizeram isso com Mário Soares (foi indecente), fazem isso com os conselheiros de Estado ("jarretas", "ultrapassados", "fora da realidade" lhes chamam), repetem-no, agora, com o Bloco de Esquerda.

Será que querem mandar os velhos para as montanhas?

Fernando Dacosta

Liberdade e Opinião, 

eis a questão!

Um jovem de 14 anos, um líder partidário e um primeiro ministro sofreram, quase na mesma altura, percalços por questões de liberdade de expressão.

O jovem, morador em Cascais, foi violentamente agredido por quatro outros jovens devido à publicação, no seu perfil social, de conteúdos desagradáveis aos agressores; o líder partidário (Paulo Raimundo, do PCP) achou-se ofendido por José Rodrigues dos Santos (excelente jornalista) o haver desfeitiado numa entrevista à RTP; 

o primeiro ministro (Luís Montenegro, do actual Governo) por ter sido insinuado cúmplice em corrupções, ao nível de José Sócrates, pelo Chega.

Os limites de liberdade de opinião e expressão veem-se, assim, questionados por situações diversas, adversas, que a justiça terá, por certo, engulhos no decidi-las. 

À excepção do jovem (repugnante a brutalidade sofrida!), os outros tornam difícil encontrarem apoios pois não é pela repressão que se lida com a opinião, mesmo quando (sobretudo) ela é discutível. 

Paulo Raimundo e Luís Montenegro deviam responder, se possível com humor, sempre possível, ao desconforto sentido. As ideias não se combatem com força, enfrentam-se com ideias - inteligentes.

Fernando Dacosta

Afastem este Fisco!

Há pessoas que dizem temer tanto o fisco, hoje, como a Pide, ontem. 

Se a António Maria Cardoso - sede da extinta polícia - se desmemoriou, foi desmemoriada, os departamentos fiscais, esses, consolidam implacabilidades sem piedade contra milhões de contribuintes –privilegiadamente os da classe média que os da alta …

As razões das vítimas (sujeitas a avarias electrónicas, a marcações prévias para atendimentos, a más caras de funcionários) não encontram a consideração a que tinham direito se a democracia fosse real.

Trabalhar metade do ano para o Estado

Isto num Estado que confisca todo o dinheiro que ganhamos de Janeiro a Junho! Andámos, com efeito, a trabalhar metade do ano para ele, já que o poder nada produz, apenas distribui – para os da sua corte.

Aos impostos directos há a somar, como se sabe, os indirectos, que de pouco nos servem pois vemos despedaçarem-nos direitos adquiridos (na saúde, na assistência, na cultura, na educação, na habitação) e, acintosamente, nos serviços que deviam ser, por direito, de ajuda ao público. 

A violência (legalmente) cometida pela fiscalidade (penhoras de habitações, de pensões, de veículos, de ordenados, de contas bancárias, de terrenos, de partes de firmas, de recheios de empresas, etc, etc.) assemelha-se à cometida pelas ditaduras.

Dois milhões de ordens de penhoras

Só num ano foram, entre nós, emitidos dois milhões de ordens de penhora (53.273 de imóveis), mas nenhuma foi feita por cidadãos contra as dívidas do Estado para com eles.

Se o referido Estado confisca, por incumprimentos, bens aos devedores, estes também deviam poder fazer-lhe o mesmo.

Aliás, é inacreditável que ele, Estado, se preste a cobrar, tal a volúpia que sente nisso, dívidas de instituições e empresas adjacentes.

A textura fiscal é neste momento pior, apesar do cadavérico Simplex, do que há cinquenta anos.

Há quem, em vésperas de eleições, guarde memória disso.

Fernando Dacosta

O eixo do ódio



Quem não se radicalizou política e culturalmente não vê substanciais diferenças entre os bombardeamentos da Ucrânia pela Federação Russsa e os bombardeamentos de Gaza por Israel. Ambos matam por igual, civis, mulheres, crianças, doentes, ambos destroem por igualdades,

hospitais, escolas, futuros, ambos cometem crimes contra a humanidade, contra adignidade tornando este um tempo de monstruosas abjecções.

A hipocrisia leva os agressores a, fingindo-se vítimas, propagandearem cessares fogo para intensificarem matanças sob propagandas de covardia. O século XXI está a projectar o que de pior há na natureza humana em barbárie e desmesura, com sequelas terríveis em várias gerações.


O seu contágio em certos sectores (políticos, intelectuais, jornalísticos) é inquietante pelo que revela de subjugações, de redis interiorizados. certas zonas do sul do País realizam-se sessões a exultarem Putin e Trump, com generais a proclamá-los redentores da humanidade, criadores de novas felicidades.

Aliás, os milhares que, indignados, se manifestam na Europa contra Netanyahu não saem à rua contra Putin, apesar dos dois serem, no egoísmo, no deslimite, afins - a eles juntando-se ultimamente, para cartaz do eixo do ódio, Donald Trump, o novo incensado pelos referidos indignados.                   Fernando Dacosta

Poderes, vacas e pêssegos


Camões dizia que a principal característica do povo português era a inveja; Agostinho da Silva, a manha. Inveja manhosa teria, assim, engendrado os brandos costumes que muitos acreditam ser postura nossa. A realidade histórica e cultural, e cívica revela, porém, a pouca verdade disso. 

Na superfície somos pacíficos, molengões mesmo, mas no interior não. António José Saraiva comparava-nos a pêssegos, aveludados na pele, rijíssimos no caroço. Daí alguns partirem os dedos quando tentam esmagar-nos.

Com essa ambiguidade nos afirmamos e resistimos vai para mil anos, mil anos de violências, fomes, pestes, ludíbrios, perseguições, matanças, fogueiras, roubalheiras, até que, por vezes, o tanque enchia e extravasava.

O século XX foi, aliás, fértil em extravases: matou-se nele um rei, matou-se um príncipeherdeiro, matou-se um presidente da República, matou-se um primeiro ministro, havendo quem lamente não se ter continuado. O anterior, o XIX, conheceu guerrilhas que eliminaram barbaramente mais de 300 mil pessoas. Para trás nem é bom falar.

Temos tentado fintar essa violência (a do Marquês de Pombal contra os Távoras foi cenografada ao horror) cobrindo-nos de véus de névoas, no não dizer o que pensamos mas o que convém, a fim de não irmos parar a galés, a cárceres, a prateleiras, a desempregos, a exílios, a Caxias; no responder nim a tudo, no não desfeitear partidos, lóbis, sacristias,aventais, patrões, no desconfiar que os democratas só dão, aqui, liberdade para concordar com eles, não ouvem os outros, impõem-se aos outros.

Cedo percebemos que do poder, sobretudo central, não costuma sair grande coisa, apenas cobradores de impostos, fiscais do pensamento correcto, arregimentadores de mancebos para guerras, impositores de estatismos, burocratas de corrupções. Ser-se despótico com os debaixo, subserviente com os de cima é estrada para sucessos, quer dizer, para tachos. 

Papas,bolos, respeitinhos são portas de entrada na corte. Há já quem diga que Portugal é uma república monárquica. "Se os meus actos coincidissem com os meus pensamentos há muito que eu estava nacadeia", sintetizava o grande Raúl Brandão.

Quando nos pressentia depressivos, Agostinho da Silva alentava-nos, "vá, reajam, os poderes não passam de vacas, devemos dar-lhe palmadinhas no rabo e tirar-lhes o leite possível, épreferível, aliás, que sejam vacas a touros"

Fernando Dacosta

manifestação em Paris de feministas

Dilatando o conceito de feminismo que, nas últimas décadas, tem norteado a luta pela afirmação das mulheres, Natália Correia criou o de femininismo - que vultos marcantes da cultura ocidental, como a escritora Marguerite Youcenar, apoiaram e adoptaram.

A autora de Sonetos Românticos pretendeu com isso alargar horizontes nos que defendem a igualdade da mulher (alguns a superioridade) relativamente ao homem, para reivindicar, como objectivo superior, a dignificação do feminino, feminino que tanto existe na mulher como no homem (bis, trans, pans) pois representa a parte mais sensível, afectiva, criativa do ser humano.  Daí o seu apoio a movimentos defensores de 

 

minorias, migrantes, negros, LGBT, ciganos, idosos, sem abrigo, sem justiça; daí a sua reserva a lutas entre sexos como as que surgiriam no chamado #MeToo; daí a sua discordância com as mulheres que, em lugares de poder, imitam, ultrapassando, os comportamentos masculinos num, palavras suas, "travestismo insuportável".

A maior parte de nós, no entanto, não a compreendeu (ainda), não a escutou (ainda). "Tenho tanta coisa a dizer e tão poucos a quem dizer", reconhecia, sempre lúcida, sempre futura, pouco antes de morrer.         

Fernando Dacosta

2 milhões  de  portugueses  vivem  na pobreza


A nossa democracia, adulta por fora mas não por dentro, foi contaminada por ideólogos, à esquerda e à direita, que lhe desmaiaram as cores e a luz. 

Os que entre nós resistiram às ditaduras sofrendo-lhe as agruras, apanham agora com os contentinhos do regime (e da oposição) a pretenderem, sob mantos eleiçoeiros, a aliciá-los.

A democracia, esta, funciona apenas relativamente ao poder político - o único que depende de urnas – já que ninguém vota nos outros, económico, financeiro, informativo, judicial, educacional, etc.

Portugueses pagam dívidas que não contraíram

As pessoas estão a conhecer situações de extrema apatia. Em excesso por todo o lado (há jovens a mais, adultos a mais, idosos a mais, doentes a mais, estranhos a mais), elas veem-se depreciadas para lá do aconselhável.

Quando se julgava que a justiça social se aprofundara, eis que surgem ameaças devastadoras: falência da segurança social, incerteza nas reformas, amputações na saúde, desvio de verbas para a defesa, para pagamento de dívidas externas (que os portugueses comuns não contraíram).

Pervertidos por corrupções, impunidades, tops, audiências, sondagens, os mecanismos de protecção estremecem em cadeia.

A divisa é agora não provocar ondas 

Dificilmente se viu na sociedade portuguesa tanto desequilíbrio, tanta classe média destroçada, tanta gente a dormir nas ruas, tanta oferta de prostituição, de submissão.

A competência profissional é inútil, a honradez pessoal inconveniente, a dignidade cívica inoportuna. Não provocar ondas tornou-se uma divisa.

O fosso entre as pessoas agiganta-se. Governantes, governados, pais, cônjuges, colegas comportam-se como se o outro fosse um rival, um inimigo, um objecto a comprar: compram-se filhos, apoiantes, votantes, governantes.

O fracasso fez-se uma nova, outra, peste; tornou-se um opróbrio, como a pobreza, a doença, a velhice, a deficiência. Temos multidões de expropriados por impostos.

Expropriados por impostos

Caminhamos para clubes, para raças de eleitos, de herdeiros (nas famílias, nas empresas, nos partidos, nos lóbis, nas camas), brancos, ricos, elegantes, poderosos. Quem fica isolado, quem não logra acesso ao êxito, é porque não o merece, porque não é dotado, nem diligente, nem imaginativo.

Fora do palácio da corte, as multidões diariamente, expropriadas por impostos, desacolhidas das habitações (que se não constroem), dos hospitais (que se não reformulam), da cultura

 (que não democratiza), da ética (que se não acende), da solidariedade (que se não preserva)

A criação já náo tem valor

Depois das ilusões do 25 de Abril, da Comunidade Europeia, do socialismo, da democracia cristã, do liberalismo, caímos no aturdimento (trabalho, televisão, futebol, bar, automóvel, moda), uns, e no alheamento (desemprego, doença, exclusão, miséria, desesperança) outras.

Pessoas refugiam-se nos comprimidos

A ressaca, da ideologia revolucionária à liberal, é constrangedora. É-se apreciado pelo que se diz, não pelo que se faz; é-se retribuído pelo que se exibe, não pelo que se cria. Estoira-se de angústia mas afirma-se que tudo vai bem. 

A percentagem de depressivos e de suicidas (de suicidados) explode. O recalcamento do íntimo, do espiritual, dissolve-nos.

A arrogância e a crueldade, a megalomania e a desumanização alteram, debilitam os sistemas imunológicos dos indivíduos e da sociedade

Cada vez mais nos refugiamos no soporífero, no excitável , no sobrenatural, no consumismo, nas drogas, nos recusamos a pensar, a intervir.

Dois milhões de nós (20 por cento das famílias) vivem no limiar da pobreza; 18 por cento das crianças encontram-se em estado de fragilização. 

Continuamos a ser dos países mais pobres da UE, de maior clivagem social e afectiva.

A Democracia não é um ponto de chegada

Durante muito tempo a sociedade dividiu-se, segundo a concepção de cada um, em duas metades: a da esquerda e a da direita, a do executivo e a da oposição, a da ética e a da traficância, a do controle e a da subversão.

Depois passou a cindir-se em (novas) duas partes: uma, a mesma, a do governo e oposição, dos partidos e imprensa, das polícias e tribunais; outra, a dos cidadãos independentes, a dos grupos que procuram alternativas fora das malhas do correcto.

É nesta que se gera o futuro.

Maria de Lourdes Pintassilgo, uma luz passada na nossa esperança, alertava-nos em madrugadas do Botequim, que a democracia era um ponto de partida, não de chegada – se o não o percebermos, perdemo-la, perdemo-nos.

Fernando Dacosta

O OVO DA CENSURA

Os ataques aos jornalistas (ameaças, processos, controles) surgidos ultimamente entre nós por parte de vários dos actuais políticos - políticos sem golpe de asa para as funções que ocupam – estão a condicionar de novo áreas fundamentais à liberdade de expressão e opinião. 

Tal era, no entanto, previsível dada a presente situação do País e o pendor, nele, para a manipulação, para a desresponsabilização.

Generalizou-se, aliás, a ideia de que a Censura acabou no 25 de Abril.  Não acabou: foi privatizada, isto é, deixou de ser exercida por organismos do Estado para ser, sob outros nomes, por gabinetes de múltiplos poderes.

A CENSURA NÃO-ASSUMIDA


Antes do 25 de Abril não havia, note-se, uma Censura, mas duas – a Censura (assumida) da direita, nacionalista, moralista (do Estado Novo), e a Censura (escamoteada) da esquerda, internacionalista, neo-realista. 

Com a Revolução a primeira foi trespassada, a segunda reforçada. Resultado, a hecatombe - de leitores, de suportes, de isenção, de autonomia - do actual jornalismo, eclipsado por uma comunicação social que não se sabe muito bem o que é: serão os comboios, os telefones, os pombos correios? perguntava, sarcástico, Baptista-Bastos.

Há quem, maldosamente, a veja (à comunicação social) como uma espécie de guarda-chuva, ou guarda-sol, branqueadora de manipulações, corrupções, explorações e outros 'ões' afins.

Como em democracia parece mal matar os mensageiros, o que se fazia em épocas muito recuadas (não tanto como isso) passou-se a neutralizá-los tornando-os, sobretudo por via económica, obedientes e dependentes, sem protecção, sem intervenção, sem opinião. 

As ditaduras controlam pelo silêncio e pela repressão, as democracias pelo chinfrim e pela sedução; as primeiras gostam de utilizar militares, as segundas comunicadores.


SURREALISTAS AFASTADOS


A Censura do Estado Novo, selectiva, implacável, visava acima de tudo apagar os que figuravam nas suas listas negras, sobretudo se ligados ao Partido Comunista Português, a força verdadeiramente temida pelo regime. 

Quer escrevessem sobre flores ou sociologia eram, não por intervirem mas por existirem, cortados.

O controlo da esquerda exercia-se nos jornais a partir, especialmente, dos suplementos, caso dos culturais e económicos. Particulares vítimas de ambas foram os surrealistas (anatemizados, exilados), os católicos progressistas (embora amparados pelo Cardeal Cerejeira), os fracturantes (em semiclandestinidade), os da extrema esquerda (por incontroláveis) e, na fase final, os desertores da guerra colonial. 

Salazar, apreciador de jornais e jornalistas, tinha (alguma) má consciência ante eles por causa da censura. Dizia mesmo ter sido, em Coimbra, "vítima dela". 

JORNALISTAS PERDERAM O QUE GANHARAM


Daí tentar compensá-los (amaciá-los) com privilégios relevantes na época, como uma assistência médica gratuita de grande qualidade, através da Casa da Imprensa, como 50 por cento de descontos em todos os transportes públicos, como cedências de terrenos para vivendas próprias (as cidades dos jornalistas em Nova Oeiras e Carnaxide), etc. tudo anulado depois do 25 de Abril.

Logo a seguir à Revolução, os novos poderes tiveram a peregrina ideia de entregar um jornal a cada partido, o que, de imediato, abarrotou as redacções de comissários políticos, de controleiros, de manipuladores afectando gravemente a credibilidade da informação – jamais reposta.

Os títulos que tentaram resistir ou foram fechados (caso de O Século e das suas publicações, Século Ilustrado, Vida Mundial, Modas e Bordados), ou foram sabotados, caso do Diário Popular e do Diário de Notícias com tiragens, então, na ordem dos 100 mil exemplares diários. 

OS JORNALISTAS ESTÃO PRECARIZADOS

Leis que obrigavam os directores a serem jornalistas com mais de cinco anos de profissão, queatribuíam aos Conselhos de Redacção poderes vinculativos, que impunham cotas para estagiários foram atiradas para o lixo. A precarização e a proletarização mancharam todo o sector. 

A via económica tornou-se a grande tesoura da democracia. Natália Correia, que foi jornalista (no Diabo) advertia ser "tão censurante o impedir de dizer como o obrigar a dizer" (texto que devia figurar em todas as redacções, gabinetes, ministérios, escolas – mas não figura), pois o obrigar a dizer abre portas a todos os populismos e manipulações, e fack-news. Em comunicado recente, o Fórum Internacional de Jornalistas, Escritores e Editores alertava dizendo "enganarem-se aqueles que acreditam só haver em sociedades totalitárias ou autoritárias censura à liberdade de escrever, ler, editar.

Nas outras sociedades, as democráticas, multiplicam-se mecanismos de autocensura através de pressões políticas, económicas, sociais, culturais de igual modo perigosas e devastadoras".Há 100 anos Raul Proença escrevia na Seara Nova que "chamamos liberdade de



CENSURA ESTÁ HOJE PRIVATIZADA 



texto censurado antes de 25 de Abril de 1974

(Jornal O Século encerrado para reestruturação no tempo do socialista Manuel Alegre e nunca mais abriu)

(Raul Rego à janela do jornal República - tendência socialista- contra a censura dos tipógrafos)

 imprensa ao direito que têm certos potentados, graças à sua fortuna e suas chantagens, de influir na opinião pública" - Tem-se visto. O ovo da censura continua, independentemente dos regimes, a chocar autoritarismos multifacetados.

Fernando Dacosta

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O cansaço do homem actual

O grande fenómeno em curso no chamado primeiro mundo é "o do cansaço do homem actual", comentava no Botequim, em madrugadas de poesia e profecia, Natália Correia.

Milénios de trabalho, de lutas, de matanças, de destruições extenuaram-no. A gestão por si feita da humanidade salda-se emincríveis abominações – e crescentes perspectivas de aniquilamento do planeta.

Poder feminino

"Só conseguiremos evoluir se o poder for entregue ao feminino", acrescentava Natália, "o feminino existente nas mulheres, nos homens, no bis, nos trans, nos anatemizados".

As suas palavras ora gelavam, ora incendiavam, não se faziam cinzas nem sarros - daí interrogar, interrogar-se se estávamos preparados para a grande mudança.

Que diria ela hoje de lideranças como a da senhora Von Der Leyen, presidente da Comunidade Europeia? e a da senhora Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu? e a da senhora Kristalina Georgieva, directora do FMI? e a da senhora Giorgia Meloni, primeira ministra de Itália? e a da senhora…?

"Não sei adaptar-me aos tempos que correm", desalentava-se. "Há pessoas que não são vocacionadas para este existir, eu sou uma delas!"

Retrocessos avulsos

Muitos dos avanços conseguidos nas últimas décadas - controlo de enfermidades, aceitação de diferentes, de sem território, de sem sujeições ao instituído - retrocediam.

Não íntegros, dirigentes perdem credibilidade; não amadas, mulheres sucumbem agredidas; não tolerados, os livres tornam-se perseguidos; não considerados, os idosos sentem-se desperdícios; não reconhecidos, os jovens empacotam exílios avulsos; não apoiados, os casais substituem filhos por animais de companhia.

Povos de democracias angulares agredem migrantes, refugiados, negros, ciganos, homossexuais, velhos, doentes, apátridas, crianças, inculcando-lhes a dor de não merecerem existir; países soberanos invadem países soberanos, arrasam cidades, chacinam populações, provocam fomes, doenças, ódios. Insaciáveis, geram gente inerte, tendente ao suicídio e a distorções mentais – e ao terrorismo.

Guardanapos de papel 

Cientistas falam de novas pandemias causadas por retracções na saúde, na investigação, no crescer da miséria, da desigualdade, da subnutrição, da desesperança.

Pouco antes de morrer Natália, em guardanapo de papel, escrevia que "quase nada vale a pena/ mesmo que a alma não seja pequena/ Aliás, só as almas grandes são capazes de perceber o pouco que ainda vale muito a pena/ o amor, a liberdade, a criatividade".

O problema é que, na sua perspectiva, "o produzir, o consumir, defendidos pela cultura patriarcal", alienam "a capacidade para o amor, para a liberdade, para a criatividade".

A crise em que estamos comprova-o. E Natália afasta-se: "Prefiro desaparecer a submeter-me".

Desapareceu e não se submeteu.

Fernando Dacosta 


Responsáveis escolares acabam de propor "versões de exames em português não materno", revela a jornalista Maria Margarida, a fim de se facilitar a prestação de alunos que não falam o nosso idioma.

Desvalorizar a língua de um povo é desvalorizar o pensamento desse povo. É o que se passa quando se mexe numa língua sedimentada por muitas gerações, muitos séculos; quando se a contamina com palavras, com expressões de outras, sobretudo se mais poderosas;

quando, por acordos (ortográficos e afins) se alteram as suas estruturas, maneira de alterar as ideias, os comportamentos que geram; quando se permitem títulos de obras, canais de televisão, cursos de universidades, intervenções de políticos, de intelectuais, de jornalistas em inglês.

Aos malefícios em nós, no passado, da cultura francesa - que Natália Correia denunciou e hierarquizou em desaparecidíssimo ensaio – sucederam-se os da cultura anglo saxónica, através da língua inglesa que está a colonizar-nos escandalosamente.

O provincianismo tem sido devastador, como a desterritorialização criativa (quem não pertence a um lugar não pertence ao mundo), a sobranceria lobística, o desnivelamento social, o esbulho fiscal.

No começo os regimes, para se imporem, abrem-se à cultura. Foi assim no Estado Novo, foi assim no pós 25 de Abril. Consolidados, porém, logo passaram ou a manipulá-la ou a enxotá-la (à cultura), através de repressores, uns, de sedutores, outros, as ditaduras controlando pelo silêncio, as democracias pelo chinfrim, as primeiras servindo ideologias, as segundas mercados.

A última revolução, a de 1974, trouxe a Portugal, por algum tempo, horizontes promissores de liberdade, de diversidade devido à acção dos militares que a ousaram. 

Isso permitiu ao poder de então ser habitado por vultos da cultura, como no novo Parlamento (inesquecível a Assembleia Constituinte) onde sobressaíram, entre outros, Sophia de Mello Breyner, Natália Correia, Manuel Alegre, Helena Cidade Moura, Henrique de Barros, José Manuel Mendes, José Manuel Tengarrinha;

onde os políticos eram pessoas de cultura, Mário Soares, Álvaro Cunhal, Adriano Moreira, Sá Carneiro, Maria de Lurdes Pintassilgo, Freitas do Amaral, Melo Antunes, Francisco Lucas Pires.

A primeira fissura, porque cultural, isto é cívica, seria provocada pelo cerco a ele, Parlamento, de 12 para 13 de Setembro de 1975, faz agora 50 anos, por trabalhadores da construção civil, sob o impulso de forças extremadas que sequestraram durante 36 horas deputados eleitos democraticamente, entusiasticamente (90 por cento de votos) pelos portugueses. 

De destacar, nessa dramática noite, a corajosa acção da poetisa Sophia de Mello Breyner no apoio a congressistas idosos e doentes, então em perigo de vida por impedimento de radicais (dentro e fora do palácio) em assisti-los. Agostinho da Silva, defronte do edifício, na manhã seguinte, dirá que a revolução se perdera aí, dada a impreparação dos seus líderes: não se pára à porta dos palácios a tomar.

Exposto, o PREC (Processo Revolucionário em Curso) impulsionou Ramalho Eanes (homem de cultura), com militares do 25 de Abril, a instaurar, dois meses depois, a democracia em Portugal, no 25 de Novembro de 1975, base para a afirmação cultural.

A cultura, essa, ver-se-ia depois fora da política, da informação, da actualidade (do futuro?), à direita e à

esquerda; a tal ponto que, hoje, deputados, governantes, militantes, professores acham que ela, e a língua portuguesa, não são temas a considerar. Nas campanhas e debates em curso, ninguém falou em cultura. Irá deixar de haver uma Pátria na língua portuguesa?

Fernando Dacosta

Mário Soares: uma das fotos mais emblemáticas de sempre quando puxam pelas "bochechas", o político que nos conduziu pelos labirintos da História 

Freitas do Amaral, com uma  voz de "santo", manteve a direita viva no reboliço da Revolução, mais tarde filiou-se no PS e foi presidente da Assembleia das Nações Unidas

Álvaro Cunhal, o comunista programático, a quem Oliveira Salazar permitiu exames universitários em Direito na prisão, com notas altas, só mais tarde igualadas por Marcelo Rebelo de Sousa

António Ramalho Eanes, o general que saíu da brumas para dar sentido à Revolução e o peito às balas, em pleno tiroteio no Alentejo

Nos primeiros tempos pós 25 de Abril, ainda os partidos não infantilizavam os eleitores, o País viveu um dos períodos mais exultantes, mais desconcertantes da sua história. À solta, os portugueses assumiam afectuosidades e delírios sem medida, sem controles.

Isso foi especialmente visível nas campanhas eleitorais para o Parlamento (inesquecíveis as da Assembleia Constituinte) e para a Presidência da República.

Candidatos e eleitores, militantes e populares fizeram-nas espectáculos insuperáveis de alegria, de intervenção, de manha, de oportunismo. O grande teatro trocava os palcos pelos palanques, os políticos faziam-se actores – e que magníficos alguns o eram.

O contacto com o povo dito profundo, e deste com os seus novos representantes, tornou-se fremente, a fantasia a correr nos comícios, nas arruadas, nas páginas dos jornais, nas sessões da Assembleia (recordem-se os períodos de Antes da Ordem do Dia), nas esperanças de um futuro a chegar – um futuro, profetizava Natália Correia, sonhado muito antes.

No terreno não havia, então, previsibilidades, racionalidades; ficções, sim, promessas, sim. Sim. Vendavais de vitalidade volteavam o país e a cabeça das populações no que tinham de mais recalcado.

Eufórico, Mário Soares entrava no autocarro do PS (imitado do de Mitterrand) sob apoteoses: "Estes já estão no papo!", exclamava – não sabendo, porém, que tais apoteoses eram maliciosas, que os entusiastas delas iam, depois, para as tabernas maldizer os por si acabados de bajular; que, velhacamente, trocavam de autocolantes, de galhardetes, de punhos a erguer consoante a natureza do partido em itinerância.

Mário Soares, o mesmo, vê-lo-íamos depois no Algarve a beijar crianças de flores nos sorrisos e, distraído, a pegar num anão e a beijocá-lo mecanicamente .

Ramalho Eanes, nas primeiras presidenciais, a espantar o País (depois de o resgatar a 25 de Novembro) ao subir, ante tiros disparados contra a sua caravana, para o tejadilho do carro onde seguia (Manuela Eanes a segurar-lhe pela janela as pernas para não cair) enfrentando adversários sem rosto nem decência.

Álvaro Cunhal a chegar, noite alta, a Baleizão ante lamentos de mulheres por os filhos se terem "passado para o outro" – o outro era Cavaco Silva; a ouvir a jornalista Helena Mensurado perguntar a uma adolescente se sabia quem era Catarina Eufémia: Não, é uma cantora rock?

Francisco Sá Carneiro, detendo poderes de transfiguração, em palco (como Cavaco Silva), a galvanizar multidões; Diogo Freitas do Amaral entronizando romarias pagãs a caminho de Belém; Otelo Saraiva de Carvalho abrindo azuis em bairros de lata e de lama; Pinheiro de Azevedo, o inesquecível almirante sem medo, resmungando anátemas contra sequestros e coacções; Maria de Lourdes Pintassilgo, entre Manuela Eanes e Natália Correia, espalhando humanidades por seguidores em espera de partilhas.

Francisco Lucas Pires, o mais imaginativo, o mais selectivo político português da época conquistando, pela inteligência, pela autenticidade jornalistas de liberdades (Vicente Jorge Silva do Expresso, Fernando Diogo do Diário de Notícias, Fernando Semedo do Diário, Rogério Rodrigues do Diário de Lisboa, eu próprio de o Jornal) através de notáveis intervenções que o excepcionalizaram culturalmente - e o fracassaram politicamente (no CDS). O seu erro foi não se ter filiado no PS e não se ter recusado ir para Bruxelas.

Tudo isso passou. As campanhas perderam calor e sal, pilhéria e malandrice, tornaram-se insípidas, tecnocratas, chatas. Arredaram o Eça (das fabulosas Campanhas Alegres) encafuando-o no horroroso Panteão de Santa Engrácia, numa Lisboa que ele ridicularizaria à apoplexia. 

Só falta agora, para descanso final, meterem lá de vez os restos que restam do 25 de Abril. 

"Um indivíduo com fome tem o direito de se apropriar do que precisa para sobreviver, isto é, tem o direito ético de roubar. O homem que está neste mundo é, pelo facto de estar, senhor dos bens deste mundo, se lhos retiram, deve assenhorear-se deles"

afirma António Ramalho Eanes, ex-Presidente da República

Portugal subalimentado

Nos últimos anos os portugueses reduziram para metade o que despendiam em comida: de 29,5 por cento passaram para 15,5 por cento. Falar verdade aos próximos, estar com eles, transmitir-lhes forças que os levem a actuar, a exigir, é a única maneira de impedir o horizonte de deserção que se adensa.

Ninguém suporta a desumanização, o abandono actual. O indivíduo vive rodeado de multidões que o cercam pela televisão, pelo trânsito, pelo urbanismo, mas sente-se cada vez mais inexistente.

O que lhe chega pela comunicação social humilha-o, frustra-o. As histórias, nela, encontram sempre soluções, as suas, as da sua vida a, não. As populações integradas no sistema (a corte dele) evoluíram em termos de nível de vida, mas as segregadas, cujo número não pára de crescer, encontram-se em condições insuportáveis

Quando não tiverem nada a perder as pessoas vão pôr-se em movimento, organizar-se por núcleos, não por partidos, e ultrapassar o medo. Perceberam já que o legal, se não for ético, deve ser recusado - e não é ético, embora seja legal, muito do que se passa no mundo da finança, da banca, da política, da justiça, da igreja, da comunicação social, etc.

Os espezinhados não irão deixar-se imolar passivamente. "Um indivíduo com fome tem o direito de se apropriar do que precisa para sobreviver, isto é, tem o direito ético de roubar. O homem que está neste mundo é, pelo facto de estar, senhor dos bens deste mundo, se lhos retiram, deve assenhorear-se deles", afirma António Ramalho Eanes, ex-Presidente da República.

Fernando Dacosta

Os donos do País aumentam os seus rendimentos em 30 por cento ao ano, os servos deles em um por cento; 22 por cento das famílias encontram-se abaixo do limiar da pobreza, 28 por cento das crianças em estado de progressiva degradação, 50 por cento dos jovens em fuga.


A classe média sucumbe à violência de uma burocracia infernal e de um fisco que lhe tira 40 por cento dos rendimentos. A justiça, a saúde, a educação, a habitação, a assistência, os transportes, as culturas foram desmanteladas por cativações de cega implacabilidade.

Enfileiramos nos estados mais pobres da CE e nos de maiores desigualdades. Ao não atingirem os padrões do sucesso impostos pelos modelos vigentes, as pessoas entram em desvalorização pessoal; ao não verem reconhecidos os valores que as formaram, ao assistirem à vitória dos seus contrários, caem na dissolução, na desistência.

Para muitos dos excluídos, dos excedentários, dos dispensados, idosos, crianças, adultos, jovens, doentes, deficientes só resta a miséria, o abandono, o tédio, a fuga, a fuga aos outros, a si mesmos.

Os que se acham a mais estão a um passo de adoecer. Cortados os fios do interesse pela vida entram, ao não se sentirem gostados, em depressão.

A síndroma da inutilidade é uma ameaça grave, avisam psiquiatras e psicólogos cujos consultórios recebem cada vez mais vítimas dela.

Fernando Dacosta

Mais medo do desemprego

do que da morte 

"Desapareceram da nossa juventude as preocupações de interajuda ou de espírito de equipa. Esta fase vai durar algumas décadas", dizia-nos o prof. José Manuel Tribolet: 

«Os portugueses encontram-se numa posição frágil, entre os povos desenvolvidos e os subdesenvolvidos, entre a sua integração na CE (são os servos que se vêem aceites no solar dos senhores) e a insegurança em si mesmos.

Apesar de se sentirem bem vestidos, têm a casa vazia e não sabem como cuidar dela. O salve-se quem puder instalou-se. Era fundamental restituir a ética, a utopia às pessoas, faze-las pensar, projectar. 

Por que não aproveitar, por exemplo, a força extraordinária, em criatividade, em conhecimento, da terceira idade, que está a crescer? O Estado precisava, para lutar contra a apatia, de ser provocador»

Psiquiatras alarmam-se: «Há pessoas com mais medo do desemprego do que da morte». Mundializa-se a concentração, não a partilha – o que gera os actuais, e conhecidos, radicalismos.

Fernando Dacosta

botequim.pt, 26 de Maio dse 2025

Invasão de facas e garfos

Os contentinhos dos regimes são em grande parte responsáveis pela situação a que eles chegam. 

Por ingenuidade, distracção, indiferença uns; por hipocrisia, colaboracionismo, oportunismo outros, deixaram geralmente correr o marfim, isto é, a manipulação, o compadrio, a impunidade sem ouvir os alertas dos que se inquietam com os embustes desenrolados.

Quem os exprimia (aos alertas) vê-se objecto ora de sarcasmos e exclusões, ora de paternalismos e arrogâncias. 

A comunicação social ajuda à festa através de penetras partidários que a futebolizam alegremente. 

Cantando e rindo (e seduzindo, e mentindo) delira-se: comentadores extasiam-se ante o ter do presente em relação ao do passado, não dizendo que há meio século, no nosso caso, estávamos em antepenúltimo lugar na Europa e agora, segundo relatórios independentes, em último, apesar dos níveis superiores em consumo de sapatos, viagens, telemóveis, computadores, plasmas e afins; que esses níveis se devem mais à evolução da tecnologia do que da política, à massificação social do que à governação nacional. 

Impõe-se a propaganda, não a informação, a fantasia, não a realidade. Enxotam-se os jovens (para não contestarem) sob o embalo de serem a geração melhor preparada de sempre ( em quê?) apontando o lá fora como redil de felicidades.

À socapa, enche-se o vazio deles com imigrantes (copiando o que se faz nesse lá fora) sem rastreio nem prudência, asseverando ser a maleabilidade, leia-se precariedade - nos estômagos, nos empregos, na habitação, nos sentimentos - factor de enriquecimento. 

Hoje vemo-nos estrangeiros num país que dizem ser o nosso - mas que não reconhecemos por  estratégias crescentes de desidentificação e oportunismo.

"A Europa está a ser invadida", alertava Agostinho da Silva, "por novos bárbaros, só que agora empunham não espadas e sabres, mas facas e garfos!"

Fernando Dacosta


Haver muita informação não significa só por si haver muito conhecimento, melhor conhecimento; significa por vezes o contrário: não pensar, não criticar, não desalinhar, não actuar.

O excesso na actual informação está, assim, a matar a genuinidade da cultura. 

Psiquiatras previnem que não somos feitos para levar com tanta programação, tanta alienação; previnem, igualmente, ser necessário, para nosso equilíbrio, voltarmos a escrever à mão, a lermos sem pressa, a relativizarmos as tecnologias, a falarmos pessoalmente uns com os outros e não com écrans.

Conceber a cultura como utilidade tornou a utilidade cultura. Produzir, consumir alienam as faculdades da criação, da intervenção. São Bernardo avisava que o excesso de trabalho e de obediência endurece os corações.

As precariedades, as prateleiras, os recibos verdes, os garrotes administrativos, os interesses partidários, a concentração de órgãos de comunicação, a menorização da sabedoria devastam- nos gravemente, fazendo esquecer que a cultura e a democracia começam, lembrava Agostinho da Silva, " no comer decente, no habitar seguro, no vestir confortável, no pensar livre".

Ora os alicerces do pensar livre assentam na escrita e no livro, no convívio e na liberdade, na memória e na imaginação, daí a subalternidade a que esses alicerces são remetidos. A escrita, última trincheira da liberdade individual, está a ser, propositadamente, depreciada.

O economicismo tem sido devastador, como a desterritorialização criativa (quem não pertence a um lugar não pertence ao mundo), a sobranceria lobística, a corrupção legalizada, o desnivelamento social, o esbulho fiscal.

A seguir ao 25 de Abril gerou-se nos órgãos de comunicação social a ideia de que a cultura não devia estar circunscrita a secções definidas, como era tradição entre nós.

Na verdade, os jornais tinham como referência suplementos próprios a ela dedicados, como os suplementos literários, alguns de grande influência e qualidade, como os do, entre outos, Diário de Lisboa, Diário de Notícias, Primeiro de Janeiro, Jornal do Fundão, fazendo orgulho nisso, pois eram suportes preciosos para a divulgação, debate, revelação da criatividade nas artes, nas ideias, no pensamento de então.

A supremacia da informação sobre a cultura, que se impôs (uma informação ideologicamente comprometida), subalternizou esses suplementos, esvaziando a sua vitalidade, até que os extinguiu sem estremecimento nem alternativa.

Ao querer espalhar-se a cultura por todas as páginas, como se defendia, acabou-se por atirá-la pela borda fora – como se pretendia?

O deserto dela, cultura (e criatividade, e inovação, e reflexão) contaminou a vida actual, escamoteando às pessoas capacidade crítica, acção interventiva, esperança em si mesmas. Osresultados eleitorais são consequência disso.

"Portugal é um país de castrados pelo terrorismo verbal. Não presto para essas revoluções! ",exclama Natália Correia

Fernando Dacosta

UM JIPE EM SEGUNDA MÃO

Há 50 nos, fá-los agora, uma peça de teatro sobre a guerra colonial, intitulada "Um Jipe em Segunda Mão", conquistava o Grande Prémio de Teatro RTP. Alguns especialistas (Amélia Rey Colaço, Luiz Francisco Rebello, Jorge Listopad, Carlos Avilez, Isabel da Nóbrega, Silvina Pereira) consideraram-na o melhor texto dramático existente sobre aquele tema. Amélia Rey Colaço, membro do júri que a distinguiu, afirmaria ao Diário de Notícias tratar-se de uma "pequena obra prima da dramaturgia portuguesa".

Com receio de incomodar militares e católicos, entre outros, o projecto foi, então, metido na gaveta durante mais de 10 anos. Diversos grupos cénicos, de diversos pontos do País, representaram-no, entretanto, com destaque para o Teatro Maizum dirigido por Silvina Pereira, numa notável encenação de Adolfo Gutkin e envolvente cenografia de José Manuel Castanheira. Presente, o marechal Francisco Costa Gomes aplaudiu essa estreia.

Carlos Pinto Coelho, quando director de programas da estação, resgatou a peça e incumbiu o realizador Jaime Campos de a filmar, o que este fez reunindo, em elenco excepcional, Eunice Muñoz, Sérgio Godinho, Orlando Costa, Antonino Solmer e António Rama. O filme seria (posterior e discretamente) transmitido no Segundo Canal, de madrugada – e depositado depois nos arquivos da RTP - RTP que nunca o incluiu nas, por exemplo, até hoje 51 evocações da Revolução.

É essa gravação que o Botequim, por cedência dos actuais dirigentes da referida emissora, se oferece no link junto.

Camiões TIR, precisam-se

                                          botequim.pt,  04 Junho 2025



Enfastiado, Agostinho da Sila ouvia o CEU de uma multinacional, multíssinacional enumerar as vantagens do grande liberalismo na criação de riqueza, vantagens a que o povo português era relutante, pelo que o País não passava da cepa torta.

Em apoio da sua teoria, hierarquizava as ditas riquezas por si conquistadas com muito sacrifício, empresas, fábricas, navios, aviões, roças, minas, prédios, etc., portfólio do sucesso de um capitalista, com imenso trabalho e dedicação. A que Agostinho contrapõe, mas não costuma ser a trabalhar que se enriquece. O CEU olha-o surpreendido, enquanto o Professor continua, os cínicos dizem que só se enriquece ou por herança, ou por jogo e especulação, ou por cama, ou por roubo, ou por tudo isso.

Enriquece-se criando riqueza, interrompe o visado, essa é a superioridade do liberalismo sobre a social democracia e sobre o socialismo.

E o princípio dos vasos comunicantes? isto é, o enchimento de uns vasos faz-se à custa do esvaziamento de outros, Raúl Brandão já dizia, há um século, que por cada pessoa que enriquece há mil que empobrecem. Hoje essa percentagem é muito maior.

A despedir-se de chofre, o interlocutor de Agostinho ouve este perguntar-lhe: já tem uma frota de camiões TIR, suponho? Camiões TIR, para quê? Para levarem todos os seus bens para a cova quando o amigo morrer!

Fernando Dacosta

Camiões TIR, precisam-se

                                          botequim.pt,  04 Junho 2025



Enfastiado, Agostinho da Sila ouvia o CEU de uma multinacional, multíssinacional enumerar as vantagens do grande liberalismo na criação de riqueza, vantagens a que o povo português era relutante, pelo que o País não passava da cepa torta.

Em apoio da sua teoria, hierarquizava as ditas riquezas por si conquistadas com muito sacrifício, empresas, fábricas, navios, aviões, roças, minas, prédios, etc., portfólio do sucesso de um capitalista, com imenso trabalho e dedicação. A que Agostinho contrapõe, mas não costuma ser a trabalhar que se enriquece. O CEU olha-o surpreendido, enquanto o Professor continua, os cínicos dizem que só se enriquece ou por herança, ou por jogo e especulação, ou por cama, ou por roubo, ou por tudo isso.

Enriquece-se criando riqueza, interrompe o visado, essa é a superioridade do liberalismo sobre a social democracia e sobre o socialismo.

E o princípio dos vasos comunicantes? isto é, o enchimento de uns vasos faz-se à custa do esvaziamento de outros, Raúl Brandão já dizia, há um século, que por cada pessoa que enriquece há mil que empobrecem. Hoje essa percentagem é muito maior.

A despedir-se de chofre, o interlocutor de Agostinho ouve este perguntar-lhe: já tem uma frota de camiões TIR, suponho? Camiões TIR, para quê? Para levarem todos os seus bens para a cova quando o amigo morrer!

Fernando Dacosta

"Um indivíduo com fome tem o direito de se apropriar do que precisa para sobreviver, isto é, tem o direito ético de roubar. O homem que está neste mundo é, pelo facto de estar, senhor dos bens deste mundo, se lhos retiram, deve assenhorear-se deles"

afirma António Ramalho Eanes, ex-Presidente da República

Portugal subalimentado

Nos últimos anos os portugueses reduziram para metade o que despendiam em comida: de 29,5 por cento passaram para 15,5 por cento. Falar verdade aos próximos, estar com eles, transmitir-lhes forças que os levem a actuar, a exigir, é a única maneira de impedir o horizonte de deserção que se adensa.

O individuo cada vez mais cercado

Ninguém suporta a desumanização, o abandono actual. O indivíduo vive rodeado de multidões que o cercam pela televisão, pelo trânsito, pelo urbanismo, mas sente-se cada vez mais inexistente.

O que lhe chega pela comunicação social humilha-o, frustra-o. As histórias, nela, encontram sempre soluções, as suas, as da sua vida a, não. As populações integradas no sistema (a corte dele) evoluíram em termos de nível de vida, mas as segregadas, cujo número não pára de crescer, encontram-se em condições insuportáveis

Os espezinhapos não se deixarão imolar

Quando não tiverem nada a perder as pessoas vão pôr-se em movimento, organizar-se por núcleos, não por partidos, e ultrapassar o medo. Perceberam já que o legal, se não for ético, deve ser recusado - e não é ético, embora seja legal, muito do que se passa no mundo da finança, da banca, da política, da justiça, da igreja, da comunicação social, etc.

Os espezinhados não irão deixar-se imolar passivamente. "Um indivíduo com fome tem o direito de se apropriar do que precisa para sobreviver, isto é, tem o direito ético de roubar. O homem que está neste mundo é, pelo facto de estar, senhor dos bens deste mundo, se lhos retiram, deve assenhorear-se deles", afirma António Ramalho Eanes, ex-Presidente da República.

Fernando Dacosta

Cultura: não se pode exterminá-la?

Num colóquio sobre literatura, já lá vão uns anos, alguém pergunta a Jorge de Sena - o genial autor de Sinais de Fogo, um dos nossos mais notáveis romances de sempre - para que servia a cultura. Ele silencia por breves momentos e depois responde: serve para mostrar aos outros, e a nós próprios, que somos, que podemos ser melhores do que os outros, e nós próprios pensamos que somos.

Ela é a maior alavanca que o ser humano tem para evoluir, para superar o meio que o limita, criar comportamentos mais justos e fraternos, mais interventivos e harmoniosos; ou seja, é o caminho de ascensão para a dignidade, para a liberdade.

Daí, os que vivem do contrário disso, isto é, da exploração, da manipulação, da infantilização dos outros (os três aõs do totalitarismo), ou combaterem, ou esvaziarem, ou perverterem, ou paternalizarem a cultura e os seus criadores e defensores por perigosa, por ameaçadora dos seus interesses. Como exterminá-la directamente não dá votos, depreciam-na menorizando-a através da chacota, da penúria, da desistência. Veja-se o espaço que a comunicação social, o ensino, a política, os lazeres lhe dão hoje – a RTP 1 não tem um programa cultural; nas recentes campanhas eleitorais, nos últimos programas partidários, nos actuais debates públicos, nos postcards da moda ninguém fala em cultura. Camões já dizia que quem pensa mal de si acaba por tornar-se naquilo que pensa.

Outro poeta de génio, Natália Correia, destaca que "os gostos estéticos da burguesia, do proletariado e de uma certa intelectualidade confundem-se cada vez mais num plebeísmo degradante rumo a precipícios em que vão cair todos juntos".

A cultura já está à beira desse precipício – só falta empurrá-la, exterminá-la.

Fernando Dacosta

Portugal partiu uma perna

A ditadura do Estado Novo foi uma dura tala posta na perna esquerda de Portugal, perna partida por excesso de movimento do regime de então, a jovem república liderada pelo senhor Afonso Costa. Isto dizia, no seu jeito flutuante de dizer, Agostinho da Silva.

Metaforizando, o Professor condimentava: o gesso, sobretudo em membros locomotores é, como se sabe, bastante incómodo, faz comichão, faz calor, dificulta ligeireza no andar obrigando a lentidões, a renúncias desesperantes. 

De vez enquanto o enfermeiro substituía o gesso, salgava a ferida com álcool e sais, piterava (tirar com pide) excrescências avermelhadas, ligava tudo outra vez, união apertada, e o País seguia coxeando, resmungando, amochando.

Com o tempo a fractura solidificou, a perna ganhou força e vontade de liberdade. Numa madrugada de Abril, novos enfermeiros, outros, chegaram e partiram o gesso fazendo o ar fresco circular sobre a cicatriz. 

E logo o País desatou, eufórico, a correr, a correr, não reparando que o piso onde saltitava era desnivelado, esburacado. Em Maio, ele sempre gostou de Primaveras, tropeçou, caiu e, em força, estilhaçou a perna e o braço esquerdos.

Não aprendeu, pelos vistos, grande coisa. Irá aguentar novos gessos?

Fernado Dacosta

A Cultura a arder

A depreciação da cultura, isto é, do pensamento, das diferenças, da liberdade, da memória passou, entre nós, da retórica para a acção, do silêncio para o berro, do apagamento para a violência, simbolicamente ostentada no 10 de Junho, o último, num gesto de indivíduos radicalizados contra actores isolados que iam representar uma peça sobre Camões no teatro A Barraca, em Lisboa, atirando o intérprete do autor dos Lusíadas, Adérito Lopes, para o hospital. 

Maria do Céu Guerra, uma das nossas maiores actrizes actuais, directora e encenadora do espectáculo (belíssimo!) intitulado "O amor é um fogo que arde sem se ver", classificou os atacantes de neonazis, após o que suspendeu a representação em causa.

A depreciação, à direita e à esquerda, da cultura, do pensamento, da diferença, da liberdade, da memória, crescente entre nós nos últimos tempos, sobretudo em áreas como o teatro e a literatura, fragilizou-as, expondo-as à javardice de hordas envergonhantes do ser português.

Golpear Camões através do seu intérprete (mesmo desconhecendo-o quem o fez) é um sinal alertador da atmosfera que se adensa ante a condescendência colaborante instalada na política, na intelectualidade, na justiça, na democracia.

A cultura começa no comer decente, no habitar seguro, no vestir confortável, no pensar livre, dizia Agostinho da Silva, para ódio dos primatas que polulam entre nós.

Fernando Dacosta

Grupo nazi agride actorAdérito Lopes

António Adérito Borges Lopes nasceu Lisboa, 14 de fevereiro de 1980, é ator, doutorado em Comunicação, Cultura e Artes (especialidade em Teatro), pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve (2014-2018).

Tem pós-doutorado em Teatro – Ensino Artístico, desenvolvido na Escola Superior de Teatro e Cinema – Instituto Politécnico de Lisboa (2022-2023), mestre em Teatro, Artes Performativas, Interpretação pela ESTC - Escola Superior de Teatro e Cinema - Instituto Politécnico de Lisboa (antigo Conservatório Nacional de Teatro) (2011-2013).

Quando Portugal parecia feliz

Antes das navegações, quando D. Pedro se voltou para a Europa (que percorreu pormenorizadamente), e D. Henrique para o oceano (que mandou percorrer exaustivamente), Portugal era um território quase próspero, quase feliz.

A paz generalizara-se. A agricultura, o comércio, os ofícios, as artes, desenvolviam-se harmoniosamente. A produção, em quantidade e qualidade, satisfazia as necessidades internas e abria-se, com êxito, às exportações. Gomes Anes de Zurara, o cronista, entusiasmava-se : "Este é o maior e mais bem aventurado reino que há no mundo. Temos entre nós todas as boas coisas que um reino abastado deve ter".

Foi então que o atlantismo venceu o continentalismo — e Portugal se derramou. As sementes do colonialismo e do esclavagismo irromperam, benzidas pelos interesses do Vaticano e da coroa, do tráfico e do negreirismo, da pilhagem e da violência, levadas no bojo das nossas caravelas e no egoísmo da nossa cupidez.

A terra é trocada pelo mar, os mouros pelos negros, a honradez dos cavaleiros pela ambiguidade dos comerciantes. O ludíbrio torna-se-nos uma arte. A falsificação das cartas de marear (só um grupo restrito detém a chave da sua leitura) permite manter insondáveis os segredos das navegações – e

resguardadas as mais valias dos descobrimentos.

As naus avançam. Encontram ilhas, povoam enseadas, erguem padrões, apuram conhecimentos, desfazem lendas. Arrecadam proventos. Se a princípio os marinheiros têm de ser recrutados à força (escolhem-se os que não sabem nadar para não fugirem de bordo), depois de dobrado o Cabo Não todos querem partir: é mais aliciante ir recostado num convés, a balouçar a perna, do que andar de enxada na mão a arrotear o campo.

Alguns enfastiam-se: a imobilidade por falta de ventos parece uma amostra do descanso final.

Outros maravilham-se: um pôr do sol, um fulgor de peixe, um avistar de terra, um corpo nu, justificam uma viagem, um sonho.

O declínio começou quando os monarcas se assumiram absolutistas, quando as razões de Estado passaram a dominar, por elas (razões de Estado), foi morta D. Inês e abandonado D. Fernando e imposta a religião de Roma à do Santo Espírito.

Tudo atrai e empolga, tudo repele e desanima em nós – tudo é fado em nós.

Fernando Dacosta

Quisemo-nos mestiços

Habituado a conciliar contrários, o português sabe que a sua identidade não se dissolve quando posta em contacto com a dos outros. Pelo contrário, enriquece-se, contagia-se, contagia. A miscig enação (de pele, de culturas, de afectos, de comércios, de trapaças) é-lhe uma normalidade secular.

O diferente emerge no isolado, não no massificado; o diferente conduz ao superior, o massificado à indiferença e esta à desistência. O nosso destino tem sido o de andarmos de oceano em oceano, de continente em continente, feitos intermediários de civilizações, subjugações, cre dos, culturas, paixões. 

A nossa maior habilidade é, lembrava Agostinho da Silva, a da capatazia, capatazes entre impérios e colónias, multinacionais e mercados de matéria-prima, entre mandantes e mandados, exploradores e explorados.

Mais do que uma costela (a juntar à judaica, à visigoda, à árabe, à africana) temos o corpo de outros; mesmo se a pele nos for clara, os olhos azuis, a cultura saxónica, sentimo-nos mestiços, quisemo-nos mestiços.

O sangue, os comportamentos, os sentimentos, os fatalismos, as manhas, as sensualidades misturam-senos alheios, em negócios e batalhas, domínios e vassalagens, escravaturas e paixões. somos povos de retalho, de conciliação; 

não gostamos de exclusões mas de acrescentamentos, ao ou, ou, preferimos o e, e; somos lusitanos, e judeus, e árabes, e visigodos, e africanos, com alegria, com desvergonha no sê-lo.

Nenhum povo europeu se mostrou tão capaz de enraizar a sua cultura em terras de outros como o português", reflecte António José Saraiva: "Perdemos, no entanto, todas as guerras defensivas travadas fora do território nacional".

Na chamada Metrópole, a presença de novos, outros, falantes do português — brancos, negros, mestiços, índios, orientais — generalizou-se a partir do século XV, tal com volta a generalizar-se agora.

O mesmo fenómeno dá-se, não por acaso, no início e no fim do ciclo colonial. 

O Velho do Restelo é das personagens mais lúcidas e perturbadoras do nosso imaginário, por isso tantos achincalham tantos, por isso tantos achincalham a nossa história.

Será que o fascínio pelos de fora acentua a depreciação pelos de dentro? – interrogava-se, interrogava-nos, ousadíssima, Natália Correia.

Fernando Dacosta

TEMPOS DE PEDINCHA

À entrada de supermercados, em cruzamentos de ruas, em proximidades de feiras, de esplanadas, de eventos culturais, desportivos, etc. tornou-se frequente surgirem pequenos grupos a envolverem quem aparece para, exibindo simpatias e insistências, pedirem contribuições para ou entidades sonantes, ou particulares carenciados, ajudas a terceiros, cada vez mais numerosos delas, ajudas, dada a ineficácia das políticas sociais, depauperadas por ásperos neoliberalismos, entre nós.

São pedinchas organizadas, pressionadas, a favor de famílias em crise, de bombeiros sem recursos, de meninas desvalidas, de ligas para a saúde, para a prevenção, de pimpolhos em fim de curso, de núcleos ecologistas, normalmente realizadas aos fins de semana e de mês, com criancinhas e senhoras transbordando bondades, pedinchas feitas a uma martirizada classe média, já espoliada de impostos, de taxas, de arrestos, tudo montado sem fuga nem fundo, estrategicamente em zonas de consumo, como supermercados, para encurralar doadores.

Os maiores beneficiados acabam por ser, no entanto,  os precisados, mas os ditos supermercados que vendem sem descontos nem pudor os produtos caritativos (caridade cara), somando lucros aos milhões que diariamente embolsam, tornando o altruísmo dos que pedem e dos que dão equívoco, frustrante mesmo.

Para onde vão, afinal, os pesadíssimos descontos tirados aos contribuintes pelo Estado, Estado que não lhes dá (aos contribuintes) contas deles, da maneira como os gasta, onde os gasta, apesar de democrático, apesar da sua função ser, dever ser, o bem estar das populações que deve, devia servir.

Por isso Agostinho da Silva decidira não ter bilhete de identidade (na altura não havia cartão

de cidadão) para não pagar impostos, não pelos impostos em si, mas pela maneira obscura como os derretia..

Fernando Dacosta