ARRANCAR CRISTO DA CRUZ

Festeja-se mais uma vez a crucificação e a ressurreição de Cristo, estranho ritual de sofrimento e júbilo; sofrimento por Ele ter sido pregado num madeiro entre dois ladrões, um dos quais bom ladrão (?), júbilo por voltar à vida horas depois – redimindo-nos. Entremear pavores e suplícios com alegrias e esperanças são, sabe-se, elementos de domínio não muito sofisticados. Vai para dois mil anos que milhares de fiéis da Igreja de Roma cumprem, sem grandes alterações, a chamada Semana Santa, erguendo vestes negras numa sexta feira (o tempo da imolação, seguido do Enterro do Senhor) e brancas no domingo seguinte, o tempo

Jesus na cruz entre os dois ladrões.1619-1620. Por Rubens, atualmente no Museu Real de Belas Artes de Antuérpia, na Bélgica

do renascimento. É uma das encenações da liturgia católica mais envolventes e comoventes.
A figura de Jesus Cristo, cruzado nu na cruz, contagia ao despojamento, à resignação, tornando-se um símbolo do sagrado que pode habitar em nós, pelo que não se deve permitir fazerem-no alibi de interesses chãos. "Devemos unirmo-nos", escreve Natália Correia em o Armistício, longo poema de amor e exultação, "unirmo-nos e subir ao monte, e arrancar Jesus da Cruz onde O mantêm há milénios, a sangrar, para temor dos humanos. E traze-Lo, depois, para o nosso seio pois Ele é o deus mais humano de todos os que inventámos.
É tempo de cantar aleluias, não de carregar penitências. Continuarmos a consentir no Seu sacrifício é consentirmos, interiorizarmos o holocausto, todos os holocaustos, nuclear, demográfico, ambiental, racista, colonialista, é consentir, interiorizar discriminações, esclavagismos, massacres, genocídios".
Colocando a liberdade e o amor como valores supremos, Jesus não exerceu empregos, não frequentou escolas, não casou, não procriou, não votou, não pagou impostos, não fez tropa, não segregou prostitutas, nem homossexuais, nem pretos, nem deficientes, nem velhos, preocupando-se mais com os outros do que com os seus.
Marcus, apóstolo céptico, revelou (Capítulo XIII, Evangelho Apócrifo) que "a família de Jesus quis interná-Lo, tal a Sua obsessão em atender estranhos, o que O levava a distanciar-se dela, afastando a mãe e os irmãos, e todos os que acreditavam Nele".
O não atendermos, por indiferença, ao que se passa hoje à nossa volta, como na Ucrânia, em Gaza, pelo que se deu no 7 de Outubro em Israel, pela tragédia dos afogados no Mediterrâneo, dos expulsos dos Estados Unidos e da Europa é intolerável numa civilização ciosa de religiões, de santos, de igrejas, de dogmas cultuados com farisaica violência e escassa solidariedade.
Veja-se como o patriarca dos ortodoxos russos benze as carnificinas do Putin, como o líder da Casa Branca branqueia os executivos do Kremelin e de Tel Avive, como as esquerdas encobrem as infâmias do dito Hamas, como, como…
O perigo do holocausto populacional, provocado pelo excesso de gente no planeta, éaterrorizante. Francisco Costa Gomes, marechal, confessava no Botequim "recear mais a explosão demográfica do que a nuclear". O Papa Francisco advertia, por sua vez, que nem todos os casais devem, por falta de condições, procriar.
O ser humano só será valorizado quando escassear, quando se ultrapassarem as mentalidades "formigueiras e coelheiras" que, na colorida expressão de Natália Correia, nos sufocam.
Aspergidas por sacerdotes da moral, da produtividade, da guerra, da informação, do correcto, propagandeiam-se urgências de mais, mais nascimentos apesar de saber-se que o planeta rebenta de gente, de poluição dela, de destruição da natureza, insaciáveis que continuamos de mão de obra barata e farta, de carne fresca para canhões e camas, de almas frágeis para redis e subserviências.
O planeta soçobra de corpos vivos, e mortos, e apodrecidos, e cremados, tenta vomitá-los, mas eles continuam a encharcá-lo, a degradá-lo – até ele se vingar.
"Há cada vez mais pessoas a viver bem no mal e mal no bem, a depreciarem o superior, a exultarem o aviltante. Não podemos perder, como está a acontecer, Jesus Cristo!", desalentava-se a autora de "As Núpcias".

É surpreendente o à vontade com que certos instalados falam, e decidem, sobre a obrigação dos jovens em defendê-los, defende-los a si, aos seus interesses, às suas ideologias, às suas consciências. Veja-se a insensibilidade de alguns (algumas) a comentarem nas tvs estratégias de guerras em curso.
O normalizar os jovens no matar, no serem mortos, estropiados, usados não parece estremece-los; são apenas danos colaterais, dizem – e há quem o diga a sorrir.Empedernidos por egoísmos e subterfúgios, manipulações e coacções, dispomos dos outros, incluindo os filhos, como objectos sem vontade, sem sentimentos, sem angústias, sem vida.
Imolados, afastamo-los, viris, entre hipocrisias, entre medalhas - até à próxima, mais carnívora e brutal, guerra espectáculo.Aspergido por igrejas, ideologias, culturas, o filicídio encenou-se, acreditou-se altruísmo.
Danos colaterais

Os longos subterfúgios costumam, porém, significar curtas leituras, curtas memórias. Daí esquecermos que, às vezes, as vítimas, recusando sê-lo, se viram aos algozes e, ou os aniquilam, ou os substituem. Depois tudo volta, convencionalmente, conformadamente ao mesmo.

CAMÕES SUBVERSOR
Jorge de Sena foi, entre nós, quem melhor compreendeu Camões - o que não tem sucedido com alguns dos biógrafos e divulgadores da sua obra. Por interesses, por ingenuidades, por preconceitos engendraram-se à volta do poeta lendas estapafúrdias (devasso, brigão, machista, imperialista, bajulador - o que em certas alturas foi), desvalorizando a sua profunda cultura, cultura caldeada pelos clássicos, pelos marginalizados, pelos subversores, pelos sofredores. Ousadíssimo, Luis Vaz assumiu nos sonetos alturas únicas entre nós, como nos dedicados ao jovem D. Manuel de Noronha ('Alma minha
gentil quepartiste..."), morto no norte de África, e de quem fora preceptor; em época de Inquisição incluiu nos Lusíadas o episódio da Ilha dos Amores, hino à liberdade, à sensualidade, de um paganismo fracturante; em fase de delírio nacionalista criou a personagem do Velho do Restelo, voz dos que (ele próprio) avisavam ser problemática a expansão aberta pelo Descobrimentos.
Os colonialistas, se não se retiram a tempo, acabam expulsos e colonizados. Viu-se.


Mandar os velhos para as montanhas?

A escolha, pelo Bloco de Esquerda, de alguns dos seus principais fundadores , Francisco Louçã, Luís Fazenda, Fernando Rosas, como cabeças de listas nas próximas eleições está a provo crítica enxovalhantes por parte de vários comentadores. Não por questões ideológicas (naturais) mas por preconceitos (lamentáveis) de idade.
A despromoção, a discriminação dos idosos volta, assim, a ser legitimada, fomentada por posturas de crescentes retrocessos culturais e sociais. Ora "o envelhecimento biológico não significa só por si diminuição de capacidades", sublinhava o prof. Almerindo Lessa, um dos mais notáveis gerontologistas portugueses, "significa apenas, se não houver doenças graves, um abrandamento na velocidade do raciocínio, como quando num automóvel passamos da quinta para a quarta velocidade".
Até porque ele proporciona patrimónios de vivências, de conhecimentos valiosíssimos, verdadeiramente únicos; até porque hoje envelhece-se menos e mais devagar. A maior parte dos inventos patenteados são, note-se, de pessoas idosas. José Saramago ganhou, octogenário, o Nobel , Manoel de Oliveira filmou, centenário, obras de referência.
É estranha, por isso, a obrigatoriedade de impor reformas a partir dos 70 anos, sobretudo a profissionais altamente especializados, em plena forma física e intelectual; igualmente estranho é ver a idade ser transformada em arremeço contra políticos - fizeram isso com Mário Soares (foi indecente), fazem isso com os conselheiros de Estado ("jarretas", "ultrapassados", "fora da realidade" lhes chamam), repetem-no, agora, com o Bloco de Esquerda.
Será que querem mandar os velhos para as montanhas?

Liberdade e Opinião,
eis a questão!
Um jovem de 14 anos, um líder partidário e um primeiro ministro sofreram, quase na mesma altura, percalços por questões de liberdade de expressão.
O jovem, morador em Cascais, foi violentamente agredido por quatro outros jovens devido à publicação, no seu perfil social, de conteúdos desagradáveis aos agressores; o líder partidário (Paulo Raimundo, do PCP) achou-se ofendido por José Rodrigues dos Santos (excelente jornalista) o haver desfeitiado numa entrevista à RTP; o primeiro ministro (Luís Montenegro, do actual Governo) por ter sido insinuado cúmplice em corrupções, ao nível de José Sócrates, pelo Chega.
Os limites de liberdade de opinião e expressão veem-se, assim, questionados por situações diversas, adversas, que a justiça terá, por certo, engulhos no decidi-las.
À excepção do jovem (repugnante a brutalidade sofrida!), os outros tornam difícil encontrarem apoios pois não é pela repressão que se lida com a opinião, mesmo quando (sobretudo) ela é discutível.

Paulo Raimundo e Luís Montenegro deviam responder, se possível com humor, sempre possível, ao desconforto sentido. As ideias não se combatem com força, enfrentam-se com ideias - inteligentes.

Afastem este Fisco!

Há pessoas que dizem temer tanto o fisco, hoje, como a Pide, ontem. Se a António Maria Cardoso - sede da extinta polícia - se desmemoriou, foi desmemoriada, os departamentos fiscais, esses, consolidam implacabilidades sem piedade contra milhões de contribuintes –privilegiadamente os da classe média que os da alta …
As razões das vítimas (sujeitas a avarias electrónicas, a marcações prévias para atendimentos, a más caras de funcionários) não encontram a consideração a que tinham direito se a democracia fosse real.
Isto num Estado que confisca todo o dinheiro que ganhamos de Janeiro a Junho! Andámos, com efeito, a trabalhar metade do ano para ele, já que o poder nada produz, apenas distribui – para os da sua corte.
Aos impostos directos há a somar, como se sabe, os indirectos, que de pouco nos servem pois vemos despedaçarem-nos direitos adquiridos (na saúde, na assistência, na cultura, na educação, na habitação) e, acintosamente, nos serviços que deviam ser, por direito, de ajuda ao público.
A violência (legalmente) cometida pela fiscalidade (penhoras de habitações, de pensões, de veículos, de ordenados, de contas bancárias, de terrenos, de partes de firmas, de recheios de empresas, etc, etc.) assemelha-se à cometida pelas ditaduras.
Dois milhões de ordens de penhoras
Só num ano foram, entre nós, emitidos dois milhões de ordens de penhora (53.273 de imóveis), mas nenhuma foi feita por cidadãos contra as dívidas do Estado para com eles.
Se o referido Estado confisca, por incumprimentos, bens aos devedores, estes também deviam poder fazer-lhe o mesmo.
Aliás, é inacreditável que ele, Estado, se preste a cobrar, tal a volúpia que sente nisso, dívidas de instituições e empresas adjacentes. A textura fiscal é neste momento pior, apesar do cadavérico Simplex, do que há cinquenta anos Há quem, em vésperas de eleições, guarde memória disso.
O eixo do ódio

Quem não se radicalizou política e culturalmente não vê substanciais diferenças entre os bombardea-mentos da Ucrânia pela Federação Russsa e os bombardeamentos de Gaza por Israel. Ambos matam por igual, civis, mulheres, crianças,
doentes, ambos destroem por igualdades, hospitais, escolas, futuros, ambos cometem crimes contra a humanidade, contra adignidade tornando este um tempo de monstruosas abjecções.
A hipocrisia leva os agressores a, fingindo-se vítimas, propagandearem cessares fogo para intensificarem matanças sob propagandas de covardia. O século XXI está a projectar o que de pior há na natureza humana em barbárie e desmesura, com sequelas terríveis em várias gerações.
O seu contágio em certos sectores (políticos, intelectuais, jornalísticos) é inquietante pelo que revela de subjugações, de redis interiorizados. certas zonas do sul do País realizam-se sessões a exultarem Putin e Trump, com generais a proclamá-los redentores da humanidade, criadores de novas felicidades.
Aliás, os milhares que, indignados, se manifestam na Europa contra Netanyahu não saem à rua contra Putin, apesar dos dois serem, no egoísmo, no deslimite, afins - a eles juntando-se ultimamente, para cartaz do eixo do ódio, Donald Trump, o novo incensado pelos referidos indignados.

Fernando Dacosta



Poderes, vacas e pêssegos
Camões dizia que a principal característica do povo português era a inveja; Agostinho da Silva, a manha. Inveja manhosa teria, assim, engendrado os brandos costumes que muitos acreditam ser postura nossa. A realidade histórica e cultural, e cívica revela, porém, a pouca verdade disso.
Na superfície somos pacíficos, molengões mesmo, mas no interior não. António José Saraiva comparava-nos a pêssegos, aveludados na pele, rijíssimos no caroço. Daí alguns partirem os dedos quando tentam esmagar-nos.
Com essa ambiguidade nos afirmamos e resistimos vai para mil anos, mil anos de violências, fomes, pestes, ludíbrios, perseguições, matanças, fogueiras, roubalheiras, até que, por vezes, o tanque enchia e extravasava.
O século XX foi, aliás, fértil em extravases: matou-se nele um rei, matou-se um príncipeherdeiro, matou-se um presidente da República, matou-se um primeiro ministro, havendo quem lamente não se ter continuado. O anterior, o XIX, conheceu guerrilhas que eliminaram barbaramente mais de 300 mil pessoas. Para trás nem é bom falar.
Temos tentado fintar essa violência (a do Marquês de Pombal contra os Távoras foi cenografada ao horror) cobrindo-nos de véus de névoas, no não dizer o que pensamos mas o que convém, a fim de não irmos parar a galés, a cárceres, a prateleiras, a desempregos, a exílios, a Caxias; no responder nim a tudo, no não desfeitear partidos, lóbis, sacristias,aventais, patrões, no desconfiar que os democratas só dão, aqui, liberdade para concordar com eles, não ouvem os outros, impõem-se aos outros.
Cedo percebemos que do poder, sobretudo central, não costuma sair grande coisa, apenas cobradores de impostos, fiscais do pensamento correcto, arregimentadores de mancebos para guerras, impositores de estatismos, burocratas de corrupções. Ser-se despótico com os debaixo, subserviente com os de cima é estrada para sucessos, quer dizer, para tachos.
Papas, bolos, respeitinhos são portas de entrada na corte. Há já quem diga que Portugal é uma república monárquica. "Se os meus actos coincidissem com os meus pensamentos há muito que eu estava nacadeia", sintetizava o grande Raúl Brandão.
Quando nos pressentia depressivos, Agostinho da Silva alentava-nos, "vá, reajam, os poderes não passam de vacas, devemos dar-lhe palmadinhas no rabo e tirar-lhes o leite possível, é preferível, aliás, que sejam vacas a touros"

Dilatando o conceito de feminismo que, nas últimas décadas, tem norteado a luta pela afirmação das mulheres, Natália Correia criou o de femininismo - que vultos marcantes da cultura ocidental, como a escritora Marguerite Youcenar, apoiaram e adoptaram.
A autora de Sonetos Românticos pretendeu com isso alargar horizontes nos que defendem a igualdade da mulher (alguns a superioridade) relativamente ao homem, para reivindicar, como objectivo superior, a dignificação do feminino, feminino que tanto existe na mulher como no homem (bis, trans, pans) pois representa a parte mais sensível, afectiva, criativa do ser humano. Daí o seu apoio a movimentos defensores de
minorias, migrantes, negros, LGBT, ciganos, idosos, sem abrigo, sem justiça; daí a sua reserva a lutas entre sexos como as que surgiriam no chamado #MeToo; daí a sua discordância com as mulheres que, em lugares de poder, imitam, ultrapassando, os comportamentos masculinos num, palavras suas, "travestismo insuportável".
A maior parte de nós, no entanto, não a compreendeu (ainda), não a escutou (ainda). "Tenho tanta coisa a dizer e tão poucos a quem dizer", reconhecia, sempre lúcida, sempre futura, pouco antes de morrer.


CONTENTINHOS DO REGIME
2 milhões de portugueses vivem na pobreza

A nossa democracia, adulta por fora mas não por dentro, foi contaminada por ideólogos, à esquerda e à direita, que lhe desmaiaram as cores e a luz.
Os que entre nós resistiram às ditaduras sofrendo-lhe as agruras, apanham agora com os contentinhos do regime (e da oposição) a pretenderem, sob mantos eleiçoeiros, a aliciá-los.
A democracia, esta, funciona apenas relativamente ao poder político - o único que depende de urnas – já que ninguém vota nos outros, económico, financeiro, informativo, judicial, educacional, etc. As pessoas estão a conhecer situações de extrema apatia. Em excesso por todo o lado (há jovens a mais, adultos a mais, idosos a mais, doentes a mais, estranhos a mais), elas veem-se depreciadas para lá do aconselhável.
Quando se julgava que a justiça social se aprofundara, eis que surgem ameaças devastadoras: falência da segurança social, incerteza nas reformas, amputações na saúde, desvio de verbas para a defesa, para pagamento de dívidas externas (que os portugueses comuns não contraíram). Pervertidos por corrupções, impunidades, tops, audiências, sondagens, os mecanismos de protecção estremecem em cadeia.
Dificilmente se viu na sociedade portuguesa tanto desequilíbrio, tanta classe média destroçada, tanta gente a dormir nas ruas, tanta oferta de prostituição, de submissão. A competência profissional é inútil, a honradez pessoal inconveniente, a dignidade cívica inoportuna. Não provocar ondas tornou-se uma divisa.
O fosso entre as pessoas agiganta-se. Governantes, governados, pais, cônjuges, colegas comportam-se como se o outro fosse um rival, um inimigo, um objecto a comprar: compram-se filhos, apoiantes, votantes, governantes. O fracasso fez-se uma nova, outra, peste; tornou-se um opróbrio, como a pobreza, a doença, a velhice, a deficiência. Temos multidões de expropriados por impostos.
Caminhamos para clubes, para raças de eleitos, de herdeiros (nas famílias, nas empresas, nos partidos, nos lóbis, nas camas), brancos,
ricos, elegantes, poderosos. Quem fica isolado, quem não logra acesso ao êxito, é porque não o merece, porque não é dotado, nem diligente, nem imaginativo. Fora do palácio da corte, as multidões diariamente, expropriadas por impostos, desacolhidas das habitações (que se não constroem), dos hospitais (que se não reformulam), da cultura (que não democratiza), da ética (que se não acende), da solidariedade (que se não preserva)
Depois das ilusões do 25 de Abril, da Comunidade Europeia, do socialismo, da democracia cristã, do liberalismo, caímos no aturdimento (trabalho, televisão, futebol, bar, automóvel, moda), uns, e no alheamento (desemprego, doença, exclusão, miséria, desesperança) outras.
Pessoas refugiam-se nos comprimidos
A ressaca, da ideologia revolucionária à liberal, é constrangedora. É-se apreciado pelo que se diz, não pelo que se faz; é-se retribuído pelo que se exibe, não pelo que se cria. Estoira-se de angústia mas afirma-se que tudo vai bem. A percentagem de depressivos e de suicidas (de suicidados) explode. O recalcamento do íntimo, do espiritual, dissolve-nos.
A arrogância e a crueldade, a megalomania e a desumanização alteram, debilitam os sistemas imunológicos dos indivíduos e da sociedade. Cada vez mais nos refugiamos no soporífero, no excitável , no sobrenatural, no consumismo, nas drogas, nos recusamos a pensar, a intervir. Dois milhões de nós (20 por cento das famílias) vivem no limiar da pobreza; 18 por cento das crianças encontram-se em estado de fragilização. Continuamos a ser dos países mais pobres da UE, de maior clivagem social e afectiva.
Durante muito tempo a sociedade dividiu-se, segundo a concepção de cada um, em duas metades: a da esquerda e a da direita, a do executivo e a da oposição, a da ética e a da traficância, a do controle e a da subversão.Depois passou a cindir-se em (novas) duas partes: uma, a mesma, a do governo e oposição, dos partidos e imprensa, das polícias e tribunais; outra, a dos cidadãos independentes, a dos grupos que procuram alternativas fora das malhas do correcto.É nesta que se gera o futuro.
Maria de Lourdes Pintassilgo, uma luz passada na nossa esperança, alertava-nos em madrugadas do Botequim, que a democracia era um ponto de partida, não de chegada – se o não o percebermos, perdemo-la, perdemo-nos.

Os ataques aos jornalistas (ameaças, processos, controles) surgidos ultimamente entre nós por parte de vários dos actuais políticos - políticos sem golpe de asa para as funções que ocupam – estão a condicionar de novo áreas fundamentais à liberdade de expressão e opinião.
Tal era, no entanto, previsível dada a presente situação do País e o pendor, nele, para a manipulação, para a desresponsabilização. Generalizou-se, aliás, a ideia de que a Censura acabou no 25 de Abril. Não acabou: foi privatizada, isto é, deixou de ser exercida por organismos do Estado para ser, sob outros nomes, por gabinetes de múltiplos poderes.
Antes do 25 de Abril não havia, note-se, uma Censura, mas duas – a Censura (assumida) da direita, nacionalista, moralista (do Estado Novo), e a Censura (escamoteada) da esquerda, internacionalista, neo-realista.
Com a Revolução a primeira foi trespassada, a segunda reforçada. Resultado, a hecatombe - de leitores, de suportes, de isenção, de autonomia - do actual jornalismo, eclipsado por uma comunicação social que não se sabe muito bem o que é: serão os comboios, os telefones, os pombos correios? perguntava, sarcástico, Baptista-Bastos.
Há quem, maldosamente, a veja (à comunicação social) como uma espécie de guarda-chuva, ou guarda-sol, branqueadora de manipulações, corrupções, explorações e outros 'ões' afins.
Como em democracia parece mal matar os mensageiros, o que se fazia em épocas muito recuadas (não tanto como isso) passou-se a neutralizá-los tornando-os, sobretudo por via económica, obedientes e dependentes, sem protecção, sem intervenção, sem opinião.
As ditaduras controlam pelo silêncio e pela repressão, as democracias pelo chinfrim e pela sedução; as primeiras gostam de utilizar militares, as segundas comunicadores.
A Censura do Estado Novo, selectiva, implacável, visava acima de tudo apagar os que figuravam nas suas listas negras, sobretudo se ligados ao Partido Comunista Português, a força verdadeiramente temida pelo regime. Quer escrevessem sobre flores ou sociologia eram, não por intervirem mas por existirem, cortados.
O controlo da esquerda exercia-se nos jornais a partir, especialmente, dos suplementos, caso dos culturais e económicos. Particulares vítimas de ambas foram os surrealistas (anatemizados, exilados), os católicos progressistas (embora amparados pelo Cardeal Cerejeira), os fracturantes (em semiclandestinidade), os da extrema esquerda (por incontroláveis) e, na fase final, os desertores da guerra colonial.
Salazar, apreciador de jornais e jornalistas, tinha (alguma) má consciência ante eles por causa da censura. Dizia mesmo ter sido, em Coimbra, "vítima dela".
Daí tentar compensá-los (amaciá-los) com privilégios relevantes na época, como uma assistência médica gratuita de grande qualidade, através da Casa da Imprensa, como 50 por cento de descontos em todos os transportes públicos, como cedências de terrenos para vivendas próprias (as cidades dos jornalistas em Nova Oeiras e Carnaxide), etc. tudo anulado depois do 25 de Abril.
Logo a seguir à Revolução, os novos poderes tiveram a peregrina ideia de entregar um jornal a cada partido, o que, de imediato, abarrotou as redacções de comissários políticos, de controleiros, de manipuladores afectando gravemente a credibilidade da informação – jamais reposta.
Os títulos que tentaram resistir ou foram fechados (caso de O Século e das suas publicações, Século Ilustrado, Vida Mundial, Modas e Bordados), ou foram sabotados, caso do Diário Popular e do Diário de Notícias com tiragens, então, na ordem dos 100 mil exemplares diários.
Leis que obrigavam os directores a serem jornalistas com mais de cinco anos de profissão, queatribuíam aos Conselhos de Redacção poderes vinculativos, que impunham cotas para estagiários foram atiradas para o lixo. A precarização e a proletarização mancharam todo o sector.
A via económica tornou-se a grande tesoura da democracia. Natália Correia, que foi jornalista (no Diabo) advertia ser "tão censurante o impedir de dizer como o obrigar a dizer" (texto que devia figurar em todas as redacções, gabinetes, ministérios, escolas – mas não figura), pois o obrigar a dizer abre portas a todos os populismos e manipulações, e fack-news. Em comunicado recente, o Fórum Internacional de Jornalistas, Escritores e Editores alertava dizendo "enganarem-se aqueles que acreditam só haver em sociedades totalitárias ou autoritárias censura à liberdade de escrever, ler, editar.
Nas outras sociedades, as democráticas, multiplicam-se mecanismos de autocensura através de pressões políticas,
CENSURA ESTÁ HOJE PRIVATIZADA


(Jornal O Século encerrado para reestruturação no tempo do socialista Manuel Alegre e nunca mais abriu)

(Raul Rego à janela do jornal República - tendência socialista- contra a censura dos tipógrafos)
económicas, sociais, culturais de igual modo perigosas e devastadoras".Há 100 anos Raul Proença escrevia na Seara Nova que "chamamos liberdade deimprensa ao direito que têm certos potentados, graças à sua fortuna e suas chantagens, de influir na opinião pública" - Tem-se visto. O ovo da censura continua, independentemente dos regimes, a chocar autoritarismos multifacetados.


O cansaço do homem actual
O grande fenómeno em curso no chamado primeiro mundo é "o do cansaço do homem actual", comentava no Botequim, em madrugadas de poesia e profecia, Natália Correia.
Milénios de trabalho, de lutas, de matanças, de destruições extenuaram-no. A gestão por si feita da humanidade salda-se emincríveis abominações – e crescentes perspectivas de aniquilamento do planeta.


"Só conseguiremos evoluir se o poder for entregue ao feminino", acrescentava Natália, "o feminino existente nas mulheres, nos homens, no bis, nos trans, nos anatemizados".
As suas palavras ora gelavam, ora incendiavam, não se faziam cinzas nem sarros - daí interrogar, interrogar-se se estávamos preparados para a grande mudança.
Que diria ela hoje de lideranças como a da senhora Von Der Leyen, presidente da Comunidade Europeia? e a da senhora Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu? e a da senhora Kristalina Georgieva, directora do FMI? e a da senhora Giorgia Meloni, primeira ministra de Itália? e a da senhora…?
"Não sei adaptar-me aos tempos que correm", desalentava-se. "Há pessoas que não são vocacionadas para este existir, eu sou uma delas!"
Muitos dos avanços conseguidos nas últimas décadas - controlo de enfermidades, aceitação de diferentes, de sem território, de sem sujeições ao instituído - retrocediam.
Não íntegros, dirigentes perdem credibilidade; não amadas, mulheres sucumbem agredidas; não tolerados, os livres tornam-se perseguidos; não considerados, os idosos sentem-se desperdícios; não reconhecidos, os jovens empacotam exílios avulsos; não apoiados, os casais substituem filhos por animais de companhia.
Povos de democracias angulares agredem migrantes, refugiados, negros, ciganos, homossexuais, velhos, doentes, apátridas, crianças, inculcando-lhes a dor de não merecerem existir; países soberanos invadem países soberanos, arrasam cidades, chacinam populações, provocam fomes, doenças, ódios. Insaciáveis, geram gente inerte, tendente ao suicídio e a distorções mentais – e ao terrorismo.
Cientistas falam de novas pandemias causadas por retracções na saúde, na investigação, no crescer da miséria, da desigualdade, da subnutrição, da desesperança.
Pouco antes de morrer Natália, em guardanapo de papel, escrevia que "quase nada vale a pena/ mesmo que a alma não seja pequena/ Aliás, só as almas grandes são capazes de perceber o pouco que ainda vale muito a pena/ o amor, a liberdade, a criatividade".
O problema é que, na sua perspectiva, "o produzir, o consumir, defendidos pela cultura patriarcal", alienam "a capacidade para o amor, para a liberdade, para a criatividade".
A crise em que estamos comprova-o. E Natália afasta-se: "Prefiro desaparecer a submeter-me". Desapareceu e não se submeteu.

Responsáveis escolares acabam de propor "versões de exames em português não materno", revela a jornalista Maria Margarida, a fim de se facilitar a prestação de alunos que não falam o nosso idioma.
Desvalorizar a língua de um povo é desvalorizar o pensamento desse povo. É o que se passa quando se mexe numa língua sedimentada por muitas gerações, muitos séculos; quando se a contamina com palavras, com expressões de outras, sobretudo se mais poderosas;quando, por acordos (ortográficos e afins) se alteram as suas estruturas, maneira de alterar as ideias, os comportamentos que geram; quando se permitem títulos de obras, canais de televisão, cursos de universidades, intervenções de políticos, de intelectuais, de jornalistas em inglês.
Aos malefícios em nós, no passado, da cultura francesa - que Natália Correia denunciou e hierarquizou em desaparecidíssimo ensaio – sucederam-se os da cultura anglo saxónica, através da língua inglesa que está a colonizar-nos escandalosamente. O provincianismo tem sido devastador, como a desterritorialização criativa (quem não pertence a um lugar não pertence ao mundo), a sobranceria lobística, o desnivelamento social, o esbulho fiscal.
No começo os regimes, para se imporem, abrem-se à cultura. Foi assim no Estado Novo, foi assim no pós 25 de Abril. Consolidados, porém, logo passaram ou a manipulá-la ou a enxotá-la (à cultura), através de repressores, uns, de sedutores, outros, as ditaduras controlando pelo silêncio, as democracias pelo chinfrim, as primeiras servindo ideologias, as segundas mercados. A última revolução, a de 1974, trouxe a Portugal, por algum tempo, horizontes promissores de liberdade, de diversidade devido à acção dos militares que a ousaram.
Isso permitiu ao poder de então ser habitado por vultos da cultura, como no novo Parlamento (inesquecível a Assembleia Constituinte) onde sobressaíram, entre outros, Sophia de Mello Breyner, Natália Correia, Manuel Alegre, Helena Cidade Moura, Henrique de Barros, José Manuel Mendes, José Manuel Tengarrinha; onde os políticos eram pessoas de cultura, Mário Soares, Álvaro Cunhal, Adriano Moreira, Sá Carneiro, Maria de Lurdes Pintassilgo, Freitas do Amaral, Melo Antunes, Francisco Lucas Pires.
A primeira fissura, porque cultural, isto é cívica, seria provocada pelo cerco a ele, Parlamento, de 12 para 13 de Setembro de 1975, faz agora 50 anos, por

trabalhadores da construção civil, sob o impulso de forças extremadas que sequestraram durante 36 horas deputados eleitos democraticamente, entusiasticamente (90 por cento de votos) pelos portugueses.
De destacar, nessa dramática noite, a corajosa acção da poetisa Sophia de Mello Breyner no apoio a congressistas idosos e doentes, então em perigo de vida por impedimento de radicais (dentro e fora do palácio) em assisti-los. Agostinho da Silva, defronte do edifício, na manhã seguinte, dirá que a revolução se perdera aí, dada a impreparação dos seus líderes: não se pára à porta dos palácios a tomar.
Exposto, o PREC (Processo Revolucionário em Curso) impulsionou Ramalho Eanes (homem de cultura), com militares do 25 de Abril, a instaurar, dois meses depois, a democracia em Portugal, no 25 de Novembro de 1975, base para a afirmação cultural. A cultura, essa, ver-se-ia depois fora da política, da informação, da actualidade (do futuro?), à direita e à
esquerda; a tal ponto que, hoje, deputados, governantes, militantes, professores acham que ela, e a língua portuguesa, não são temas a considerar. Nas campanhas e debates em curso, ninguém falou em cultura. Irá deixar de haver uma Pátria na língua portuguesa?


Mário Soares: uma das fotos mais emblemáticas de sempre

Freitas do Amaral, com uma voz de "santo", manteve a direita viva no reboliço da Revolução

Álvaro Cunhal, o comunista programático, a quem Oliveira Salazar permitiu exames universitários em Direito na prisão
António Ramalho Eanes dá o peito às balas, no Alentejo
Campanhas deixaram de ser alegres
Nos primeiros tempos pós 25 de Abril, ainda os partidos não infantilizavam os eleitores, o País viveu um dos períodos mais exultantes, mais desconcertantes da sua história. À solta, os portugueses assumiam afectuosidades e delírios sem medida, sem controles.Isso foi especialmente visível nas campanhas eleitorais para o Parlamento (inesquecíveis as da Assembleia Constituinte) e para a Presidência da República
Candidatos e eleitores, militantes e populares fizeram-nas espectáculos insuperáveis de alegria, de intervenção, de manha, de oportunismo. O grande teatro trocava os palcos pelos palanques, os políticos faziam-se actores – e que magníficos alguns o eram.
O contacto com o povo dito profundo, e deste com os seus novos representantes, tornou-se fremente, a fantasia a correr nos comícios, nas arruadas, nas páginas dos jornais, nas sessões da Assembleia (recordem-se os períodos de Antes da Ordem do Dia), nas esperanças de um futuro a chegar – um futuro, profetizava Natália Correia, sonhado muito antes.
No terreno não havia, então, previsibilidades, racionalidades; ficções, sim, promessas, sim. Sim. Vendavais de vitalidade volteavam o país e a cabeça das populações no que tinham de mais recalcado.
Eufórico, Mário Soares entrava no autocarro do PS (imitado do de Mitterrand) sob apoteoses: "Estes já estão no papo!", exclamava – não sabendo, porém, que tais apoteoses eram maliciosas, que os entusiastas delas iam, depois, para as tabernas maldizer os por si acabados de bajular; que, velhacamente, trocavam de autocolantes, de galhardetes, de punhos a erguer consoante a natureza do partido em itinerância.
Mário Soares, o mesmo, vê-lo-íamos depois no Algarve a beijar crianças de flores nos sorrisos e, distraído, a pegar num anão e a beijocá-lo mecanicamente. Ramalho Eanes, nas primeiras presidenciais, a espantar o País (depois de o resgatar a 25 de Novembro) ao subir, ante tiros disparados contra a sua caravana, para o tejadilho do carro onde seguia (Manuela Eanes a segurar-lhe pela janela as pernas para não cair) enfrentando adversários sem rosto nem decência.
Álvaro Cunhal a chegar, noite alta, a Baleizão ante lamentos de mulheres por os filhos se terem "passado para o outro" – o outro era Cavaco Silva; a ouvir a jornalista Helena Mensurado perguntar a uma adolescente se sabia quem era Catarina Eufémia: Não, é uma cantora rock?
Francisco Sá Carneiro, detendo poderes de transfiguração, em palco (como Cavaco Silva), a galvanizar multidões; Diogo Freitas do Amaral entronizando romarias pagãs a caminho de Belém; Otelo Saraiva de Carvalho abrindo azuis em bairros de lata e de lama; Pinheiro de Azevedo, o inesquecível almirante sem medo, resmungando anátemas contra sequestros e coacções; Maria de Lourdes Pintassilgo, entre Manuela Eanes e Natália Correia, espalhando humanidades por seguidores em espera de partilhas.
Francisco Lucas Pires, o mais imaginativo, o mais selectivo político português da época conquistando, pela inteligência, pela autenticidade jornalistas de liberdades (Vicente Jorge Silva do Expresso, Fernando Diogo do Diário de Notícias, Fernando Semedo do Diário, Rogério Rodrigues do Diário de Lisboa, eu próprio de o Jornal) através de notáveis intervenções que o excepcionalizaram culturalmente - e o fracassaram politicamente (no CDS). O seu erro foi não se ter filiado no PS e não se ter recusado ir para Bruxelas.
Tudo isso passou. As campanhas perderam calor e sal, pilhéria e malandrice, tornaram-se insípidas, tecnocratas, chatas. Arredaram o Eça (das fabulosas Campanhas Alegres) encafuando-o no horroroso Panteão de Santa Engrácia, numa Lisboa que ele ridicularizaria à apoplexia. Só falta agora, para descanso final, meterem lá de vez os restos que restam do 25 de Abril.

Portugal subalimentado
Nos últimos anos os portugueses reduziram para metade o que despendiam em comida: de 29,5 por cento passaram para 15,5 por cento. Falar verdade aos próximos, estar com eles, transmitir-lhes forças que os levem a actuar, a exigir, é a única maneira de impedir o horizonte de deserção que se adensa.
Ninguém suporta a desumanização, o abandono actual. O indivíduo vive rodeado de multidões que o cercam pela televisão, pelo trânsito, pelo urbanismo, mas sente-se cada vez mais inexistente.
O que lhe chega pela comunicação social humilha-o, frustra-o. As histórias, nela, encontram sempre soluções, as suas, as da sua vida a, não. As populações integradas no sistema (a corte dele) evoluíram em termos de nível de vida, mas as segregadas, cujo número não pára de crescer, encontram-se em condições insuportáveis
Quando não tiverem nada a perder as pessoas vão pôr-se em movimento, organizar-se por núcleos, não por partidos, e ultrapassar o medo. Perceberam já que o legal, se não for ético, deve ser recusado - e não é ético, embora seja legal, muito do que se passa no mundo da finança, da banca, da política, da justiça, da igreja, da comunicação social, etc.
Os espezinhados não irão deixar-se imolar passivamente. "Um indivíduo com fome tem o direito de se apropriar do que precisa para sobreviver, isto é, tem o direito ético de roubar. O homem que está neste mundo é, pelo facto de estar, senhor dos bens deste mundo, se lhos retiram, deve assenhorear-se deles", afirma António Ramalho Eanes, ex-Presidente da República.




Os donos do País aumentam os seus rendimentos em 30 por cento ao ano, os servos deles em um por cento; 22 por cento das famílias encontram-se abaixo do limiar da pobreza, 28 por cento das crianças em estado de progressiva degradação, 50 por cento dos jovens em fuga.
A classe média sucumbe à violência de uma burocracia infernal e de um fisco que lhe tira 40 por cento dos rendimentos. A justiça, a saúde, a educação, a habitação, a assistência, os transportes, as culturas foram desmanteladas por cativações de cega implacabilidade.
Enfileiramos nos estados mais pobres da CE e nos de maiores desigualdades. Ao não atingirem os padrões do sucesso impostos pelos modelos vigentes, as pessoas entram em desvalorização pessoal; ao não verem reconhecidos os valores que as formaram, ao assistirem à vitória dos seus contrários, caem na dissolução, na desistência.
Para muitos dos excluídos, dos excedentários, dos dispensados, idosos, crianças, adultos, jovens, doentes, deficientes só resta a miséria, o abandono, o tédio, a fuga, a fuga aos outros, a si mesmos.
Os que se acham a mais estão a um passo de adoecer. Cortados os fios do interesse pela vida entram, ao não se sentirem gostados, em depressão. A síndroma da inutilidade é uma ameaça grave, avisam psiquiatras e psicólogos cujos consultórios recebem cada vez mais vítimas dela.

Mais medo do desemprego
do que da morte
"Desapareceram da nossa juventude as preocupações de interajuda ou de espírito de equipa. Esta fase vai durar algumas décadas", dizia-nos o prof. José Manuel Tribolet:
«Os portugueses encontram-se numa posição frágil, entre os povos desenvolvidos e os subdesenvolvidos, entre a sua integração na CE (são os servos que se vêem aceites no solar dos senhores) e a insegurança em si mesmos.Apesar de se sentirem bem vestidos, têm a casa vazia e não sabem como cuidar dela. O salve-se quem puder instalou-se. Era fundamental restituir a ética, a utopia às pessoas, faze-las pensar, projectar.
Por que não aproveitar, por exemplo, a força extraordinária, em criatividade, em conhecimento, da terceira idade, que está a crescer? O Estado precisava, para lutar contra a apatia, de ser provocador»Psiquiatras alarmam-se: «Há pessoas com mais medo do desemprego do que da morte». Mundializa-se a concentração, não a partilha – o que gera os actuais, e conhecidos, radicalismos.

Invasão de facas e garfos
Os contentinhos dos regimes são em grande parte responsáveis pela situação a que eles chegam. Por ingenuidade, distracção, indiferença uns; por hipocrisia, colaboracionismo, oportunismo outros, deixaram geralmente correr o marfim, isto é, a manipulação, o compadrio, a impunidade sem ouvir os alertas dos que se inquietam com os embustes desenrolados.
Quem os exprimia (aos alertas) vê-se objecto ora de sarcasmos e exclusões, ora de paternalismos e arrogâncias. A comunicação social ajuda à festa através de penetras partidários que a futebolizam alegremente.
Cantando e rindo (e seduzindo, e mentindo) delira-se: comentadores extasiam-se ante o ter do presente em relação ao do passado, não dizendo que há meio século, no nosso caso, estávamos em antepenúltimo lugar na Europa e agora, segundo relatórios independentes, em último, apesar dos níveis superiores em consumo de sapatos, viagens, telemóveis, computadores, plasmas e afins; que esses níveis se devem mais à evolução da tecnologia do que da política, à massificação social do que à governação nacional.
Impõe-se a propaganda, não a informação, a fantasia, não a realidade. Enxotam-se os jovens (para não contestarem) sob o embalo de serem a geração melhor preparada de sempre ( em quê?) apontando o lá fora como redil de felicidades. À socapa, enche-se o vazio deles com imigrantes (copiando o que se faz nesse lá fora) sem rastreio nem prudência, asseverando ser a maleabilidade, leia-se precariedade - nos estômagos, nos empregos, na habitação, nos sentimentos - factor de enriquecimento.
Hoje vemo-nos estrangeiros num país que dizem ser o nosso - mas que não reconhecemos por estratégias crescentes de desidentificação e oportunismo. "A Europa está a ser invadida", alertava Agostinho da Silva, "por novos bárbaros, só que agora empunham não espadas e sabres, mas facas e garfos!"



Haver muita informação não significa só por si haver muito conhecimento, melhor conhecimento; significa por vezes o contrário: não pensar, não criticar, não desalinhar, não actuar. O excesso na actual informação está, assim, a matar a genuinidade da cultura.
Psiquiatras previnem que não somos feitos para levar com tanta programação, tanta alienação; previnem, igualmente, ser necessário, para nosso equilíbrio, voltarmos a escrever à mão, a lermos sem pressa, a relativizarmos as tecnologias, a falarmos pessoalmente uns com os outros e não com écrans.
Conceber a cultura como utilidade tornou a utilidade cultura. Produzir, consumir alienam as faculdades da criação, da intervenção. São Bernardo avisava que o excesso de trabalho e de obediência endurece os corações.
As precariedades, as prateleiras, os recibos verdes, os garrotes administrativos, os interesses partidários, a concentração de órgãos de comunicação, a menorização da sabedoria devastam- nos gravemente, fazendo esquecer que a cultura e a democracia começam, lembrava Agostinho da Silva, " no comer decente, no habitar seguro, no vestir confortável, no pensar livre".
Ora os alicerces do pensar livre assentam na escrita e no livro, no convívio e na liberdade, na memória e na imaginação, daí a subalternidade a que esses alicerces são remetidos. A escrita, última trincheira da liberdade individual, está a ser, propositadamente, depreciada. O economicismo tem sido devastador, como a desterritorialização criativa (quem não pertence a um lugar não pertence ao mundo), a sobranceria lobística, a corrupção legalizada, o desnivelamento social, o esbulho fiscal.
A seguir ao 25 de Abril gerou-se nos órgãos de comunicação social a ideia de que a cultura não devia estar circunscrita a secções definidas, como era tradição entre nós.
Na verdade, os jornais tinham como referência suplementos próprios a ela dedicados, como os suplementos literários, alguns de grande influência e qualidade, como os do, entre outos, Diário de Lisboa, Diário de Notícias, Primeiro de Janeiro, Jornal do Fundão, fazendo orgulho nisso, pois eram suportes preciosos para a divulgação, debate, revelação da criatividade nas artes, nas ideias, no pensamento de então.
A supremacia da informação sobre a cultura, que se impôs (uma informação ideologicamente comprometida), subalternizou esses suplementos, esvaziando a sua vitalidade, até que os extinguiu sem estremecimento nem alternativa.Ao querer espalhar-se a cultura por todas as páginas, como se defendia, acabou-se por atirá-la pela borda fora – como se pretendia?
O deserto dela, cultura (e criatividade, e inovação, e reflexão) contaminou a vida actual, escamoteando às pessoas capacidade crítica, acção interventiva, esperança em si mesmas. Osresultados eleitorais são consequência disso. "Portugal é um país de castrados pelo terrorismo verbal. Não presto para essas revoluções! ",exclama Natália Correia


UM JIPE
EM SEGUNDA MÃO
Há 50 nos, fá-los agora, uma peça de teatro sobre a guerra colonial, intitulada "Um Jipe em Segunda Mão", conquistava o Grande Prémio de Teatro RTP. Alguns especialistas (Amélia Rey Colaço, Luiz Francisco Rebello, Jorge Listopad, Carlos Avilez, Isabel da Nóbrega, Silvina Pereira) consideraram-na o melhor texto dramático existente sobre aquele tema. Amélia Rey Colaço, membro do júri que a distinguiu, afirmaria ao Diário de Notícias tratar-se de uma "pequena obra prima da dramaturgia portuguesa".
Com receio de incomodar militares e católicos, entre outros, o projecto foi, então, metido na gaveta durante mais de 10 anos. Diversos grupos cénicos, de diversos pontos do País, representaram-no, entretanto, com destaque para o Teatro Maizum dirigido por Silvina Pereira, numa notável encenação de Adolfo Gutkin e envolvente cenografia de José Manuel Castanheira. Presente, o marechal Francisco Costa Gomes aplaudiu essa estreia.
Carlos Pinto Coelho, quando director de programas da estação, resgatou a peça e incumbiu o realizador Jaime Campos de a filmar, o que este fez reunindo, em elenco excepcional, Eunice Muñoz, Sérgio Godinho, Orlando Costa, Antonino Solmer e António Rama. O filme seria (posterior e discretamente) transmitido no Segundo Canal, de madrugada – e depositado depois nos arquivos da RTP - RTP que nunca o incluiu nas, por exemplo, até hoje 51 evocações da Revolução. É essa gravação que o Botequim, por cedência dos actuais dirigentes da referida emissora, se oferece no link junto.

Camiões TIR, precisam-se
Enfastiado, Agostinho da Sila ouvia o CEU de uma multinacional, multíssinacional enumerar as vantagens do grande liberalismo na criação de riqueza, vantagens a que o povo português era relutante, pelo que o País não passava da cepa torta.
Em apoio da sua teoria, hierarquizava as ditas riquezas por si conquistadas com muito sacrifício, empresas, fábricas, navios, aviões, roças, minas, prédios, etc., portfólio do sucesso de um capitalista, com imenso trabalho e dedicação. A que Agostinho contrapõe, mas não costuma ser a trabalhar que se enriquece. O CEU olha-o surpreendido, enquanto o Professor continua, os cínicos dizem que só se enriquece ou por herança, ou por jogo e especulação, ou por cama, ou por roubo, ou por tudo isso.
Enriquece-se criando riqueza, interrompe o visado, essa é a superioridade do liberalismo sobre a social democracia e sobre o socialismo. E o princípio dos vasos comunicantes? isto é, o enchimento de uns vasos faz-se à custa do esvaziamento de outros, Raúl Brandão já dizia, há um século, que por cada pessoa que enriquece há mil que empobrecem. Hoje essa percentagem é muito maior.
A despedir-se de chofre, o interlocutor de Agostinho ouve este perguntar-lhe: já tem uma frota de camiões TIR, suponho? Camiões TIR, para quê? Para levarem todos os seus bens para a cova quando o amigo morrer!

Portugal subalimentado

Nos últimos anos os portugueses reduziram para metade o que despendiam em comida: de 29,5 por cento passaram para 15,5 por cento. Falar verdade aos próximos, estar com eles, transmitir-lhes forças que os levem a actuar, a exigir, é a única maneira de impedir o horizonte de deserção que se adensa.
Ninguém suporta a desumanização, o abandono actual. O indivíduo vive rodeado de multidões que o cercam pela televisão, pelo trânsito, pelo urbanismo, mas sente-se cada vez mais inexistente. O que lhe chega pela comunicação social humilha-o, frustra-o. As histórias, nela, encontram sempre soluções, as suas, as da sua vida a, não. As populações integradas no sistema (a corte dele) evoluíram em termos de nível de vida, mas as segregadas, cujo número não pára de crescer, encontram-se em condições insuportáveis
Os espezinhapos não se deixarão imolar
Quando não tiverem nada a perder as pessoas vão pôr-se em movimento, organizar-se por núcleos, não por partidos, e ultrapassar o medo. Perceberam já que o legal, se não for ético, deve ser recusado - e não é ético, embora seja legal, muito do que se passa no mundo da finança, da banca, da política, da justiça, da igreja, da comunicação social, etc.
Os espezinhados não irão deixar-se imolar passivamente. "Um indivíduo com fome tem o direito de se apropriar do que precisa para sobreviver, isto é, tem o direito ético de roubar. O homem que está neste mundo é, pelo facto de estar, senhor dos bens deste mundo, se lhos retiram, deve assenhorear-se deles", afirma António Ramalho Eanes, ex-Presidente da República.
Cultura: não se pode exterminá-la?

Num colóquio sobre literatura, já lá vão uns anos, alguém pergunta a Jorge de Sena - o genial autor de Sinais de Fogo, um dos nossos mais notáveis romances de sempre - para que servia a cultura. Ele silencia por breves momentos e depois responde: serve para mostrar aos outros, e a nós próprios, que somos, que podemos ser melhores do que os outros, e nós próprios pensamos que somos.
Ela é a maior alavanca que o ser humano tem para evoluir, para superar o meio que o limita, criar comportamentos mais justos e fraternos, mais interventivos e harmoniosos; ou seja, é o caminho de ascensão para a dignidade, para a liberdade.
Daí, os que vivem do contrário disso, isto é, da exploração, da manipulação, da infantilização dos outros (os três aõs do totalitarismo), ou combaterem, ou esvaziarem, ou perverterem, ou paternalizarem a cultura e os seus criadores e defensores por perigosa, por ameaçadora dos seus interesses.
Como exterminá-la directamente não dá votos, depreciam-na menorizando-a através da chacota, da penúria, da desistência. Veja-se o espaço que a comunicação social, o ensino, a política, os lazeres lhe dão hoje – a RTP 1 não tem um programa cultural; nas recentes campanhas eleitorais, nos últimos programas partidários, nos actuais debates públicos, nos postcards da moda ninguém fala em cultura. Camões já dizia que quem pensa mal de si acaba por tornar-se naquilo que pensa.
Outro poeta de génio, Natália Correia, destaca que "os gostos estéticos da burguesia, do proletariado e de uma certa intelectualidade confundem-se cada vez mais num plebeísmo degradante rumo a precipícios em que vão cair todos juntos".A cultura já está à beira desse precipício – só falta empurrá-la, exterminá-la.
Portugal partiu uma perna

A ditadura do Estado Novo foi uma dura tala posta na perna esquerda de Portugal, perna partida por excesso de movimento do regime de então, a jovem república liderada pelo senhor Afonso Costa. Isto dizia, no seu jeito flutuante de dizer, Agostinho da Silva.
Metaforizando, o Professor condimentava: o gesso, sobretudo em membros locomotores é, como se sabe, bastante incómodo, faz comichão, faz calor, dificulta ligeireza no andar obrigando a lentidões, a renúncias desesperantes.
De vez enquanto o enfermeiro substituía o gesso, salgava a ferida com álcool e sais, piterava (tirar com pide) excrescências avermelhadas, ligava tudo outra vez, união apertada, e o País seguia coxeando, resmungando, amochando. Com o tempo a fractura solidificou, a perna ganhou força e vontade de liberdade. Numa madrugada de Abril, novos enfermeiros, outros, chegaram e partiram o gesso fazendo o ar fresco circular sobre a cicatriz.
E logo o País desatou, eufórico, a correr, a correr, não reparando que o piso onde saltitava era desnivelado, esburacado. Em Maio, ele sempre gostou de Primaveras, tropeçou, caiu e, em força, estilhaçou a perna e o braço esquerdos. Não aprendeu, pelos vistos, grande coisa. Irá aguentar novos gessos?
A Cultura a arder

A depreciação da cultura, isto é, do pensamento, das diferenças, da liberdade, da memória passou, entre nós, da retórica para a acção, do silêncio para o berro, do apagamento para a violência, simbolicamente ostentada no 10 de Junho, o último, num gesto de indivíduos radicalizados contra actores isolados que iam representar uma peça sobre Camões no teatro A Barraca, em Lisboa, atirando o intérprete do autor dos Lusíadas, Adérito Lopes, para o hospital.
Maria do Céu Guerra, uma das nossas maiores actrizes actuais, directora e encenadora do espectáculo (belíssimo!) intitulado "O amor é um fogo que arde sem se ver", classificou os atacantes de neonazis, após o que suspendeu a representação em causa. A depreciação, à direita e à esquerda, da cultura, do pensamento, da diferença, da liberdade, da memória, crescente entre nós nos últimos tempos, sobretudo em áreas como o teatro e a literatura, fragilizou-as, expondo-as à javardice de hordas envergonhantes do ser português.
Golpear Camões através do seu intérprete (mesmo desconhecendo-o quem o fez) é um sinal alertador da atmosfera que se adensa ante a condescendência colaborante instalada na política, na intelectualidade, na justiça, na democracia. A cultura começa no comer decente, no habitar seguro, no vestir confortável, no pensar livre, dizia Agostinho da Silva, para ódio dos primatas que polulam entre nós.

Grupo nazi agride actor Adérito Lopes
António Adérito Borges Lopes nasceu Lisboa, 14 de fevereiro de 1980, é ator, doutorado em Comunicação, Cultura e Artes (especialidade em Teatro), pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve (2014-2018).
Tem pós-doutorado em Teatro – Ensino Artístico, desenvolvido na Escola Superior de Teatro e Cinema – Instituto Politécnico de Lisboa (2022-2023), mestre em Teatro, Artes Performativas, Interpretação pela ESTC - Escola Superior de Teatro e Cinema - Instituto Politécnico de Lisboa (antigo Conservatório Nacional de Teatro) (2011-2013).

Quando Portugal parecia feliz
Antes das navegações, quando D. Pedro se voltou para a Europa (que percorreu pormenorizadamente), e D. Henrique para o oceano (que mandou percorrer exaustivamente), Portugal era um território quase próspero, quase feliz.
A paz generalizara-se. A agricultura, o comércio, os ofícios, as artes, desenvolviam-se harmoniosamente. A produção, em quantidade e qualidade, satisfazia as necessidades internas e abria-se, com êxito, às exportações. Gomes Anes de Zurara, o cronista, entusiasmava-se : "Este é o maior e mais bem aventurado reino que há no mundo. Temos entre nós todas as boas coisas que um reino abastado deve ter".
Foi então que o atlantismo venceu o continentalismo — e Portugal se derramou. As sementes do colonialismo e do esclavagismo irromperam, benzidas pelos interesses do Vaticano e da coroa, do tráfico e do negreirismo, da pilhagem e da violência, levadas no bojo das nossas caravelas e no egoísmo da nossa cupidez.
A terra é trocada pelo mar, os mouros pelos negros, a honradez dos cavaleiros pela ambiguidade dos comerciantes. O ludíbrio torna-se-nos uma arte. A falsificação das cartas de marear (só um grupo restrito
detém a chave da sua leitura) permite manter insondáveis os segredos das navegações – e resguardadas as mais valias dos descobrimentos.
As naus avançam. Encontram ilhas, povoam enseadas, erguem padrões, apuram conhecimentos, desfazem lendas. Arrecadam proventos. Se a princípio os marinheiros têm de ser recrutados à força (escolhem-se os que não sabem nadar para não fugirem de bordo), depois de dobrado o Cabo Não todos querem partir: é mais aliciante ir recostado num convés, a balouçar a perna, do que andar de enxada na mão a arrotear o campo.
Alguns enfastiam-se: a imobilidade por falta de ventos parece uma amostra do descanso final. Outros maravilham-se: um pôr do sol, um fulgor de peixe, um avistar de terra, um corpo nu, justificam uma viagem, um sonho.
O declínio começou quando os monarcas se assumiram absolutistas, quando as razões de Estado passaram a dominar, por elas (razões de Estado), foi morta D. Inês e abandonado D. Fernando e imposta a religião de Roma à do Santo Espírito. Tudo atrai e empolga, tudo repele e desanima em nós – tudo é fado em nós.
Quisemo-nos mestiços

Habituado a conciliar contrários, o português sabe que a sua identidade não se dissolve quando posta em contacto com a dos outros. Pelo contrário, enriquece-se, contagia-se, contagia. A miscig enação (de pele, de culturas, de afectos, de comércios, de trapaças) é-lhe uma normalidade secular.
O diferente emerge no isolado, não no massificado; o diferente conduz ao superior, o massificado à indiferença e esta à desistência. O nosso destino tem sido o de andarmos de oceano em oceano, de continente em continente, feitos intermediários de civilizações, subjugações, cre dos, culturas, paixões.
A nossa maior habilidade é, lembrava Agostinho da Silva, a da capatazia, capatazes entre impérios e colónias, multinacionais e mercados de matéria-prima, entre mandantes e mandados, exploradores e explorados.
Mais do que uma costela (a juntar à judaica, à visigoda, à árabe, à africana) temos o corpo de outros; mesmo se a pele nos for clara, os olhos azuis, a cultura saxónica, sentimo-nos mestiços, quisemo-nos mestiços.
O sangue, os comportamentos, os sentimentos, os fatalismos, as manhas, as sensualidades misturam-senos alheios, em negócios e batalhas, domínios e vassalagens,
escravaturas e paixões. somos povos de retalho, de conciliação; gostamos de exclusões mas de acrescentamentos, ao ou, ou, preferimos o e, e; somos lusitanos, e judeus, e árabes, e visigodos, e africanos, com alegria, com desvergonha no sê-lo.
Nenhum povo europeu se mostrou tão capaz de enraizar a sua cultura em terras de outros como o português", reflecte António José Saraiva: "Perdemos, no entanto, todas as guerras defensivas travadas fora do território nacional".
Na chamada Metrópole, a presença de novos, outros, falantes do português — brancos, negros, mestiços, índios, orientais — generalizou-se a partir do século XV, tal com volta a generalizar-se agora.
O mesmo fenómeno dá-se, não por acaso, no início e no fim do ciclo colonial. O Velho do Restelo é das personagens mais lúcidas e perturbadoras do nosso imaginário, por isso tantos achincalham tantos, por isso tantos achincalham a nossa história.
Será que o fascínio pelos de fora acentua a depreciação pelos de dentro? – interrogava-se, interrogava-nos, ousadíssima, Natália Correia.
TEMPOS DE PEDINCHA

À entrada de supermercados, em cruzamentos de ruas, em proximidades de feiras, de esplanadas, de eventos culturais, desportivos, etc. tornou-se frequente surgirem pequenos grupos a envolverem quem aparece para, exibindo simpatias e insistências, pedirem contribuições para ou entidades sonantes, ou particulares carenciados, ajudas a terceiros, cada vez mais numerosos delas, ajudas, dada a ineficácia das políticas sociais, depauperadas por ásperos neoliberalismos, entre nós.
São pedinchas organizadas, pressionadas, a favor de famílias em crise, de bombeiros sem recursos, de meninas desvalidas, de ligas para a saúde, para a prevenção, de pimpolhos em fim de curso, de núcleos ecologistas, normalmente realizadas aos fins de semana e de mês, com criancinhas e senhoras transbordando bondades, pedinchas feitas a uma martirizada classe média, já espoliada de impostos, de taxas, de arrestos, tudo montado sem fuga nem fundo, estrategicamente em zonas de consumo, como supermercados, para encurralar doadores.
.
Os maiores beneficiados acabam por ser, no entanto, os precisados, mas os ditos supermercados que vendem sem descontos nem pudor os produtos caritativos (caridade cara), somando lucros aos milhões que diariamente embolsam, tornando o altruísmo dos que pedem e dos que dão equívoco, frustrante mesmo.
Para onde vão, afinal, os pesadíssimos descontos tirados aos contribuintes pelo Estado, Estado que não lhes dá (aos contribuintes) contas deles, da maneira como os gasta, onde os gasta, apesar de democrático, apesar da sua função ser, dever ser, o bem estar das populações que deve, devia servir.
Por isso Agostinho da Silva decidira não ter bilhete de identidade (na altura não havia cartão
de cidadão) para não pagar impostos, não pelos impostos em si, mas pela maneira obscura como os derretia..
Isabel da Nóbrega Viver para outros

Isabel da Nóbrega, cujo centenário se comemora actualmente, faz parte dos criadores que chegam elipticamente, elevando-se em voos imprevisíveis. Nos textos que abriu, as palavras, as ideias, os sentimentos deslizam através de uma estética, uma ética, uma aquosidade incomum.
A crónica, que excepcionalizou (e a que hoje não se reconhece o valor patrimonial e identitário que contem) é, depois da poesia, o grande pilar da literatura portuguesa.
Sabendo-o, ela tornou-a, com singular maestria, trave da sua afirmação - no Diário de Lisboa, na Capital, no Diário de Notícias, em revistas, em livros - sob a expressiva designação de Quadratim (termo usado nas tipografias para designar espaços entre palavras).
Isabel da Nóbrega não teve, no entanto, convívio fácil nas redacções, marcadas na época, à direita e à esquerda, por misoginias geracionais; coutadas masculinas desmereciam a presença de mulheres apesar do talento de algumas como Maria Lamas, Manuela de Azevedo, Natália Correia, Maria Judite de Carvalho, Edite Soeiro, Vera Lagoa, Maria Aurora - das falecidas.
O século XX português seria, curiosamente, e em todas as décadas e sectores marcado por grandes mulheres – isso observou-nos ela, havendo quem o apelide de século feminino (até Salazar era bastante feminino) sob a capa de marialvismos farfalhudos. Talvez por isso as mulheres viram nesses 100 anos a Iª República traí-las, o Estado Novo infantilizá-las, a II República manipulá-las, a democracia mante-las em desigualdades, nos vencimentos, nas promoções, nas regalias.
Muitas rebelaram-se porém, impondo-se pela competência e inteligência, independência e persistência. Fernanda de Castro, Adelaide Cabete, Beatriz Ângelo, Ana de Castro Osório, Maria Amália Vaz de Carvalho, Guilhermina Sugia, Amélia Rey Colaço, Amália Rodrigues, Florbela Espanca, Irene Lisboa, Natália Correia, Helena Vieira da Silva, Paula Rego, Maria Lamas, Maria de Lourdes Pintasilgo, Maria Barroso, Isabel da Nóbrega tornaram-se, entre muitas outras, ângulos cimeiros na nossa cultura.
Cultura que é, lembrava Isabel da Nóbrega, feminina e rural, independentemente do sexo e do habitat dos seus autores.

De espírito ousado e criativo, Isabel da Nóbrega conciliou imaginação e acção, sensibilidade e solidez, espiritualidade e sabedoria, colocando-se mais do lado de dar do que do receber, graças a uma largueza humanística invulgar, o que levaria Natália Correia a dizer que, por vezes, ela parecia preferir viver a vida a escrever sobre a vida.
O interesse pelo íntimo, seu e dos outros, excepcionalizou-a marcando flutuações de irrecusável envolvência.
Companheira de José Saramago, voou alto, em vários planos, marcando movimentos intelectuais e cívicos, recusando dirigismos e preconceitos, apoiando com lucidez e premonição novos talentos. Saramago deveu-lhe parte da afirmação e do êxito conseguidos.
Desde cedo anteviu, e acreditou, e trabalhou para ele ganhar o Nobel. Com uma dignidade extrema recusaria, após a atribuição do prémio, convites milionários de editoras internacionais para escrever sobre a relação de ambos.
O saber estar só a voltou para quotidianos, solidões, desigualdades à sua volta; e, contra a corrente, contornou normas dominantes - na ideologia, na literatura, na sociedade, na política - que lhe minguaram presenças em certos suplementos literários e referências culturais, apesar da receptividade dos leitores e da crítica independente; apesar de ser autora de uma obra angular no século XX, "Viver Com Os Outros", romance surpreendente de sensibilidade, e cumplicidade, e disponibilidade .
Natália Correia dizia que ela, mais do que viver com os outros "vivia para outros" – os que escolhia, defendia, subia.
No nosso último encontro, serena, contida, despediu-se retendo melancolias: "O mundo que deixo ao morrer é pior do que encontrei ao nascer!".
Conservar a sardinha

Ao ser, um dia, abordado por jovens em campanha contra o colonialismo e o racismo, os descobrimentos e as obras que os glorificam, Agostinho da Silva, não disfarçando a ironia, atalhou não lhes subscrever os propósitos pois nunca quis deitar abaixo os Jerónimos, a Torre de Belém, o Padrão dos Descobrimentos, nem censurar Camões, Padre António Vieira, Fernando Pessoa. Era, aliás, "um conservador da nossa história", só que "conservava a sardinha, não a lata. A lata é para vocês". E desandou.
As estratégias de infantilização e auto-flagelação em curso, insufladas pelo correcto nos comportamentos, fomentam preconceitos contra a idade, o passado, a memória, profundamente nefastos à nossa afirmação.
A sociedade portuguesa está a ser, com efeito, fatiada em ricos e pobres, esquerdas e direitas, jovens e velhos, empregados e desempregados, públicos e privados, internacionalistas e nacionalistas, fenómeno acentuado a partir da década de oitenta do século XX, pelo cair das utopias revolucionárias, o subir da ostentação do dinheiro e do poder, a marginalização da cultura (especialmente da literatura, apesar do Nobel de Saramago), o menosprezo pela lisura, pelo trabalho, pela competência.
Quase sem motivos disparam-se hostilidades , os outros são tornados inimigos, sobretudo se diferentes, o egoísmo faz-se intransigência, a insegurança violência, os poderes perdem ética, as corrupções legalizam-se, a demagogia institucionaliza-se.
Ao provocar-se a desmemória, ou a culpa por ela, ao cobrarem-se vinganças por feitos de outros (de que as gerações posteriores não são responsáveis) abrem-se energias desagregadoras do futuro.
A relação com o passado tem-nos sido uma obsessão ao longo de séculos, ora exultando-o, ora denegrindo-o, o que bloqueia a criação, por exempleo, de um museu celebrante, não tanto dos Descobrimentos como pretendem alguns, mas sim das Navegações como defendem outros, entre os quais Agostinho da Silva, Natália Correia, Jorge de Sena, António José Saraiva, António Quadros, Miguel Torga.
Foram, na verdade, elas, navegações - como acto superior de cultura (de ciência, de engenho, de coragem, de tecnologia) - que universalizaram para sempre Portugal. Um pequeno país de milhão e meio de habitantes, a maioria analfabeta e pobre, ousou meter-se ao desconhecido e, desatando os fios do futuro, mudar o mundo. Ao perceberem que os romanos, depois de haverem colonizado a Ibéria, de terem construído estradas, imposto leis, alterado quotidianos, eram incapazes de avançar pelo Atlântico, os habitantes desse pequeno país lançaram estradas,
outras, sobre a água, ou seja naus e caravelas que os levaram para lá do conhecido inventando, supremo prodígio!, a navegação contra o vento (à bolina), maneira de percorrer todas as distâncias marítimas, o que fizeram em poucas décadas, num dos feitos mais notáveis da humanidade.
As navegações não devem ser fundidas nos colonialismos, esclavagismos, pilhagens, matanças, conversões religiosas. A história não é só a dos vencedores e vencidos, dos maus e bons, é também, e acima de tudo, a dos retirados dela, por ela, sem notícia, os que, colonizadores, subiram a civilizadores. Por isso tantos dos outrora submetidos por Portugal procuram agora refúgio nele.
Se queremos caminhar para o futuro temos, advertia Natália Correia, de atravessar o passado e compreende-lo antes de julgá-lo.
Fernando Dacosta: espírito ousado e criativo, Isabel da Nóbrega conciliou imaginação e acção, sensibilidade e solidez, espiritualidade e sabedoria, colocando-se mais do lado de dar do que do receber, graças a uma largueza humanística invulgar, o que levaria Natália Correia a dizer que, por vezes, ela parecia preferir viver a vida a escrever sobre a vida.
O interesse pelo íntimo, seu e dos outros, excepcionalizou-a marcando flutuações de irrecusável envolvência.
Companheira de José Saramago, voou alto, em vários planos, marcando movimentos intelectuais e cívicos, recusando dirigismos e preconceitos, apoiando com lucidez e premonição novos talentos. Saramago deveu-lhe parte da afirmação e do êxito conseguidos.
Desde cedo anteviu, e acreditou, e trabalhou para ele ganhar o Nobel. Com uma dignidade extrema recusaria, após a atribuição do prémio, convites milionários de editoras internacionais para escrever sobre a relação de ambos.
O saber estar só a voltou para quotidianos, solidões, desigualdades à sua volta; e, contra a corrente, contornou normas dominantes - na ideologia, na literatura, na sociedade, na política - que lhe minguaram presenças em certos suplementos literários e referências culturais, apesar da receptividade dos leitores e da crítica independente; apesar de ser autora de uma obra angular no século XX, "Viver Com Os Outros", romance surpreendente de sensibilidade, e cumplicidade, e disponibilidade .
Natália Correia dizia que ela, mais do que viver com os outros "vivia para outros" – os que escolhia, defendia, subia.
No nosso último encontro, serena, contida, despediu-se retendo melancolias: "O mundo que deixo ao morrer é pior do que encontrei ao nascer!".


A oposição de uma parte da esquerda – apoiada por uma parte da direita (sobretudo a liberal) - ao anúncio do Governo em baixar, com retroactivos, o IRS está a deixar estupefacta a classe média (a que não pode esquivar-se ao esbulho fiscal), destroçada pela violência daquele imposto.
Torna-se, assim, irónico ver a referida esquerda (a direita não surpreende) contestar tal decisão, ou seja a desmerecer os interesses dos trabalhadores sob a justificação da medida desequilibrar as contas do Estado e, estupendo argumento, de ser eleitoralista dada a proximidade de autárquicas, o que talvez se verifique. Há quem insinue, no entanto, que por trás disso pesem (justificados?) receios de perdas de privilégios dos relutantes.
A ideia divulgada de ter de ser ela, classe média trabalhadora, a salvar as ditas contas públicas generalizou-se, interiorizou-se sob argumentos enviesados.
As dívidas do País não foram contraídas pelo povo, mas por governantes seus, bastante oblíquos e fugidios.
Portugal não é uma nação inferior, sublinhe-se, é umanação inferiorizada por grupos que o têm exaurido deslimitadamente, impunemente, desavergonhadamente. "Não existem países pobres, existem, sim, sistemas falhados na gestão dos seus recursos", repetirá Noam Chomsky.
Os milhões que os governantes enterram em empresas inviáveis, as opções cúmplices que desenrolam, as ambiguidades nas fugas de impostos, as especulações na banca, nas seguradoras, nas petrolíferas, nos supermercados, os milhões diariamente escamoteados, silenciados, não perturbam, não contam?
O Conselho de Ministros responde às críticas com simplicidade: trata-se de redistribuir verbas no valor de 500 milhões por sectores da população em dificuldades, maneira de fazer circular dinheiro para revitalizar o mercado pois, como se sabe, ele (dinheiro) não se consolida na bolsa dos que o recebem. Entra por um lado, sai por outro, não dando, como bondosamente insistem alguns comentadores, para pés de peúgas quanto mais de meias.
Ordenados médios de mil e quinhentos euros mensais são, com efeito, passaportes para disfarçar misérias e vergonhas.
O que decidirão os partidos assentados na Assembleia da República quando votarem aproposta do Executivo?
O que decidirão, em próximas idas às urnas, os traídos pela corte dos instalados - à direita, à esquerda, ao centro, nos poderes ( democráticos), nas oposições ( pastosas) de hoje - se continuarem a ouvir condenar as caritativas migalhas prometidas a tantos, tantos carenciados, desprezados, aviltados de nós ?

Eanes em defesa do jornalismo
Uma das figuras mais prestigiadas do País, para muitos a nossa maior referência ética, António Ramalho Eanes, acaba de vir a público em apoio aos jornalistas portugueses empenhados numa comunicação social livre, democrática e independente.
Fê-lo a pretexto do diferendo surgido na escolha do futuro presidente da CCPJ, Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas, por a classe em causa exigir um dos seus para o referido lugar, em oposição aos que, no sector (não jornalistas), pretendem um jurista.


Em artigo no Público, o ex-Presidente da República defende a razão dos primeiros (que candidatam Luísa Meireles, directora da Lusa, por coincidência licenciada em Direito) por essa escolha não ser "um assunto menor", mas "uma questão simbólica e funcional".
Ramalho Eanes sublinha, assim, tratar-se de "uma questão simbólica" (essencial!) para a dignificação do jornalismo, ser um profissional a exercer o cargo.
Não o defender é pactuar com o estatuto de menoridade e subalternidade, de dependência e subserviência em que alguns poderes pretendem colocar os que fazem informação. Daí Ramalho Eanes, exemplar,escrever:
"A independência dos jornalistas e a liberdade de imprensa" tornam-se "essenciais ao funcionamento de
uma sociedade democrática", "não há democracia onde não houver comunicação social livre", sendo "a democracia – e só ela - que permite a plena expressão do jornalismo", jornalismo que "deve ser a vigilância constante, a descrição crítica e incisiva dos acontecimentos".
A sua importância social, cultural, democrática assenta, consequentemente, na qualidade, na seriedade dos que o exercem, protegidos, responsabilizados por uma Carteira Profissional credível - "certificação de uma capacidade para o exercício de uma missão pública", o que torna hoje, sintetiza Ramalho Eanes, "o seu valor (da Carteira) maior do que nunca".
A comunicação social "não está em vias de desaparecer", sublinha o antigo chefe de Estado, "está, isso sim, sob tensão (…) que resulta da revolução tecnológica, da compressão temporal das notícias, da erosão da confiança pública e da fragilização económica de muitas das suas instituições (…) A actividade jornalística não desaparecerá. Mas pode degradar-se. E, com ela, a nossa cidadania".
Indomável, Dona Antónia!

Pelo prestígio que a envolve, D. Antónia, a Ferreirinha, é uma das mulheres portuguesas que, ultrapassando a realidade atinge, pela ficção, dimensões de mito.
Suprema Mátria do Alto-Douro, ressurge-nos agora, mais uma vez, nos écrans de uma oportuna RTP-Memória, numa das melhores (juntamente com "Xailes Negros" e "Equador") séries da televisão: "A Ferreirinha", de Moita Flores, escritor a quem se devem, aliás, compactos notáveis (pela reconstituição de épocas, definição de personagens, fascínio de comunicabilidade) como "Alves dos Reis", "Os Távoras", "Quando os Lobos Uivam" ou "João Semana".
A interpretá-la está uma notável actriz, Filomena Gonçalves, que a ergue com laivos de genialidade – veja-se a impressionante sequência da sua morte, morte num glorioso vale de ressonâncias sinfónicas, o Douro, rio, então, de sangue e maravilhamento.Nele morreu o Barão de Forrester, por ele se comprometeram Eça, Torga, Araújo Correia, Camilo, Agustina, Pasces, Redol, Pignatelli.
Perto de D. Antónia, Camilo suicida-se, Zé do Telhado é preso, os ingleses colonizam o vinho, a filoxera seca as cepas, o poder central embota os sonhos da terra. É então que ela emerge, indómita, luminosa, tudo afrontando, primeiro-ministro, Rei, familiares, mercados, tudo ousando, fazendo tremer mesmo quem já não existe, porque ela é imortal.Essa dimensão é de uma oportunidade sôfrega, percebeu-o a RTP, no Portugal de hoje. Pena que não se continuem séries assim!
Um cerco à Constituinte

Numa tarde rugosa de calor, há 50 anos, Lisboa começou a ser percorrida por um bruáá vindo do Sul.
Submersa num Verão escaldante, a cidade não reparou logo nesse som cavo que, horas mais tarde, lhe marcaria a estupefacção. Autocarros, camionetas, tractores, betoneiras, debulhadoras, às dezenas, emergiam em grupos crescentes. Milhares de pessoas com cartazes, palavras de ordem, punhos erguidos concentravam-se nas ruas.
A recusa do ministro da tutela em recebe-los - trabalhadores da construção civil em greve nacional - levou-os a dirigirem-se a São Bento, sede do Parlamento e do Governo. Seria a maior movimentação de operários vista entre nós.
Cheira a cimento
O local "cheira a cimento", anota um repórter. As negociações arrastam-se, indefinem-se. Os deputados, recentemente eleitos, em liberdade, são impedidos de sair da Assembleia Constituinte.O seu presidente, professor Henrique de Barros, prestigiado opositor da ditadura, contar-nos-á ter "temido uma invasão do palácio" e "imposta uma Assembleia revolucionária.
As portas foram fechadas. Era medonho. Uns indivíduos com braçadeiras orientavam os manifestantes circulando por todo o lado. Recusei qualquer contacto com eles". A noite tornar-se-ia interminável para sitiados e sitiantes. "O que mais me custou foi ver", dirá Sophia de Mello Breyner, "gente democrática ser chamada de fascista".
Deputados e funcionários do PCP, e alguns jornalistas, circularão em liberdade. "Sentia-me um presidiário", desabafa Raul Rego, "vexou-me passar nos corredores diante daqueles homens de capacete que faziam de carcereiros, como quando estava no Aljube." Pinheiro de Azevedo, primeiro ministro, tentara demover os manifestantes falando-lhes de uma varanda: "Penso que têm interesse em ouvir as minhas palavras, independentemente da simpatia que tenham ou não por mim…" Não o deixaram prosseguir.
Chama-lhe fascista. Colérico, o Almirante vocifera: "Vão à
bardamerda com o fascismo!" Vira costas e entra, com essa frase, na história.Madrugada alta, Alcides Monteiro, deputado pelo PS, necessita por razões de saúde, é cardíaco e diabético, de ingerir alimentos. Um grupo vai aos reservados do PCP onde correm frangos e cervejas, pedir algo para ele.
É recusado.No exterior poucos conseguem dormir. A maioria veio de longe, Évora, Mértola, Grândola, Beja. Há fogueiras acesas e grupos que trazem de todo o País, de todos os sectores palavras solidariedade. Sentados no chão, homens cantam em coro esperanças de um novo amanhã.
Nos seus rostos, nas suas palavras espelham-se reverberações de fé. Uma mulher de Beja, bebé dormitante no colo, sorri devagar: "O meu filho vai poder comer todos os dias, durante toda a vida, que felicidade!" Aquela multidão, exclamará Sophia, a poetisa, "estava a ser iludida, havia tanta demagogia, eram vítimas manipuladas. Se se tivesse feito noutro país a demagogia que se fez aqui, teria havido outra reacção!"
O cerco ao Parlamento foi o gesto mais patético (grandioso na utopia, linear na acção) do poder popular português. Ficar-nos-á como referência do desajeitado, desamparado infantilismo que, há séculos, nos interrompeu.
Uma posta de bacalhau
Pinheiro de Azevedo recebe a visita de Henrique de Barros que, indo pelos jardins de São Bento (o percurso que Salazar gostava de fazer) o contacta."Dava-nos bem, ele era como primeiro ministro, muito prestável com os problemas da Assembleia, ao contrário de Vasco Gonçalves que estava de relações cortadas com ela.
O próprio PCP substimava-a, os seus deputados boicotavam-na não assistindo ao período de Antes da Ordem do Dia. Ao ver-me o almirante perguntou-m e se estava com fome. Claro que estava. Então ele disse-me para sentar pois um marinheiro conseguira trazer-lhe uma posta de bacalhau e quatro batatas que acabara de cozer. Sentei-me, dividiu o bacalhau e as batatas e comemos".
Acordos ambíguos são engendrados às cinco da madrugada permitindo a (quase) todos salvar a face. Cerca de 20 horas depois, os manifestantes, persuadidos por militares, abrem alas por onde os sequestrados avançam, um a um, ante coros de abjecção. Os elementos do PCP são ovacionados. "As ideologias que são idolatrias vão morrer a Portugal. Quando a revolução marxista se detiver em Lisboa, ver-se-á que a roda do mundo atingiu o limite da rotação, antes de desandar", escreve, profética, Natália Correia. "Na economia misteriosa da história, Portugal é o peso minúsculo que fará inclinar todo o conjunto".
'Jornal de Letras'
Um voo sobre
a nossa cultura

A demolição da cultura, sobretudo da literatura - isto é, do pensamento, da criatvidade, da reflexão - prossegue entre nós, em nós, sob infantilizações e vazios terraplanizadores. Certos responsáveis, em vez de a travar (à demolição), judam à festa por alheamento, por cumplicidade. O que está a acontecer com o JL, Jornal de Letras e Artes, é expressivo disso, ante o alívio de alguns e a hipocrisia de outros.


Concebido, erguido, mantido por José Carlos de Vasconcelos, jornalista e poeta de referência, tornou-se há décadas angular na imprensa cultural unindo, como poucos organismos o têm feito, os povos de
língua portuguesa. Património de afirmação de uma identidade, de um futuro, de um enriquecimento comunitário superior, o JL, lançando voos entre a CPLP e os núcleos da nossa cultura (universitários, académicos, diplomáticos, sociais) no mundial, abriu fios de ligação, de presença incalculáveis, pelo que o seu valor (imaterial) não pode ser aferido em balancetes de deves e haveres contabilisticos.
A literatura de expressão portuguesa (Camões, Vieira, Pessoa, Eça, Brandão, Natála, Saramago, Sena, Graciliano, Nelson Rodrigues, Clarisse Lispector, Bandeira, Jorge Amado, Mia Couto, Pepetela, Luandino, e tantos, tantos outros) é, em termos de afirmação, mais importante, provocava Agostinho da Silva, do que o vinho do Porto, o volfrâmio ou a dívida pública à Europa.
Fernando Pessoa lembrava que "o primeiro afloramento civiliźacional a projectar Portugal no exterior foi de natureza literária" (Cancioneiro e crónicas de cavalaria), não foram feitos guerreiros, nem comerciais, nem desportivos. Quanto é que tal vale? Ministérios, secretarias, departamentos, fundações, associações, municípios, bancos, petrolíferas, engrenagens que movem milhões não terão sensibilidade para perceberem a importância deste fabuloso património?
Mário Soares, homem de cultura e de boa literatura gostava de repetir: "Ninguém sabe quem foi o primeiro ministro no tempo de Eça de Queiroz,mas toda a gente s abe quem foi Eça de Queiroz!" O JL ajuda a isso.
Não é a escola, é a internet

Está a tornar-se curiosa (e inesperada nos dias de hoje), a reacção de certos grupos relativamente a questões do corpo, do amor, da sexualidade.
É, aliás, esta última a que causa maiores engulhos nos defensores de uma moralidade ideológica, religiosa (veja-se a actuação do novo Papa, observem-se as perseguições, com penas de morte, em países de ditaduras), aferrada a gerações de parco futuro.
Entre nós parece moda ser-se contra o conhecimento científico, à ilharga de redes sociais, de formações partidárias e orgãos de comunicação, arrastando poderes a aderir-lhes. O sistema de ensino tentou, para retirar tabus aos relacionamentos mais íntimos, descodificá-los (com alguns exageros, admite-se) à luz da medicina, biologia, sociologia, psicologia, etc.
Logo, porém, sairam a caminho pais, encarregados de educação, políticos, beatos, influencers, a rasgarem vestes contra tais disciplinas para salvaguarda, dizem, dos seus vitimizados rebentos.
Ora as crianças de hoje não é só na escola que aprendem os referidos temas é, sobretudo, na internet, manancial incontrolável, infindável, inimaginável de apelativas revelações e transgressões. Nas aulas há, pelo menos, uma preocupação didática, profilática nas suas abordagens, o que, afinal, não parece importar grande coisa aos exuberantes contestários.
Com a frontalidade que a caracterizava, Natália Correia repetia que costumam ser "os fruidores mal resolvidos a combater as liberdades sexuais por medo de serem fruidos". Onde o posso bom senso?
Infantilizar os portugueses

.
Em Portugal, nesta altura, quase nada parece valer a pena - mesmo que a alma não se tenha feito pequena.
O que se passou, continua a passar, nos último anos, os primeiros deste alucinado século, merece ser reflectido sem manipulações nem engodos, para não se pôr em risco a nossa dignidade.É difícil aceitar-se que, estando num tempo de liberdade democrática e de crescente riqueza - em que bancos, supermercados, gasolineiras, seguradoras (e afins) ganham milhões de euros por dia - dois milhões de portugueses vegetem subalimentados, submedicamentados, subaquecidos, subouvidos, com misérias mensais de 800 euros por mês;
que dois terços dos empregados não aufiram o necessário para sobreviver; que a classe média (sustentáculo das democracias) estiole asfixiada por impostos demenciais; que os jovens (os da geração melhor preparada de sempre - espantoso embuste!), sejam alfobre deneos-escravocratas, a não ser que emigrem enxutados por um país que os despreza e que, saudoso do colonialismo, importe mão de obra barata de um terceiro mundo aviltado pelos seus actuais
dirigentes; que os idosos, em número crescente, sejam caluniados de explorar o erário público, escamoteando-se o que o Estado fez dos descontos que eles e as suas empresas somaram durante pelo menos quatro décadas. Nem políticos, nem intelectuais, nem criadores, nem influencers (que ridícula palavra!) surgem a revelar ideias de recuperação, horizontes de futuro, comportamentos de decência.
Ninguém quer ouvir os outros, apenas impor-se aos outros, infantilizar os outros. No poder, socialismo, social democracia, democracia cristã, liberalismo falharam sob ideologias miríficas e filibusteiras. Nas redes sociais a inveja faz-se, entretanto, lodo, a insídia catecismo, a agonia desespero.
Bazófia nacional

.
Bazófia nacional
Mitos como o Sebastianismo e o Velho do Restelo têm sido ultimamente, e de novo, utilizados para, distorcendo-os, atacar pessoas, ideias, comportamentos incómodos ao actual pensamento do correcto. Empolado como desistência, como submissão, o Sebastianismo significa, pelo contrário, resiliência, esperança. Quando Padre António Vieira o formulou, a partir de quadras de Bandarra, fê-lo como elemento de resistência (revolucionário) ao domínio de Castela, depois do desastroso suicídio de D. Sebastião em Alcácer Quibir.
Resistência gerada pela imaginação, pela fé e, sobretudo, pela esperança de um povo num futuro que sonhou antes", na percepção de Natália Correia, em que continua a acreditar.
Daí Fernando Pessoa dizer que a verdadeira religião do português não é o catolicismo mas o sebastianismo. É graças a essa tão entranhada religiosidade que o País se tem aguentado vai para mil anos. Em neblinas afins, o Velho do Restelo, destroçado por muitos pós-modernistas, tem-se visto ser transformado em reaccionário, catastrofista, passadista, fascista e demais afins, quando é uma lucidíssima criação de Camões em época de euforia colonizadora, de traficância humana, de domínio imperialista sob bênçãos de águas vaticanas.
A voz da sua personagem (a do poeta) é uma antevisão do que, séculos depois, será o inverso dos Lusíadas: o retorno cabisbaixo, decepado de um milhão de portugueses expulsos dos territórios onde os seus filhos nasceram. Poucos perceberam, no passado e no presente, o aviso de Luiz Vaz; e poucos quiseram assinalar os 500 anos, agora volvidos, da existência do poeta - poeta que significa profeta.
Lúcido, Pacheco Pereira escreverá estarmos a esconder as palavras sábias do Velho do Restelo, a favor de uma interpretação da bazófia nacional que tem como modelo o futebol. Assim somos!
Dormir com o medo

Quem dorme comigo é o medo, é o medo, cantava Amália por saber que ele, medo, se tornara um abismo nos portugueses. Recentemente outra mulher de excepção, a juíza Maria José Morgado, afirmou com desassombrada lucidez estarmos a viver em generalizado clima de medo.
José Gil, destacado filósofo e escritor, publicara já um notável ensaio sobre Portugal, o Medo de Existir, aspecto pouco abordado apesar de, para muitos, ser uma sombra visceral. Monarquias e repúblicas, totalitarismos e democracias, igrejas e partidos sustentam-se, ora através do terror, ora do ludíbrio, com fogueiras umas vezes, com seduções outras, que o domínio e a manipulação dos povos têm a mesma raiz. Mitificada, a liberdade pós 25 de Abril não impediu comportamentos autoritários, fascizantes mesmo, que estão a recuar conquistas feitas e aceites pelas populações.
O medo de hoje é, no entanto, mais sugerido do que explícito - estamos ainda em democracia - mais paralisante do que actuante, o medo de perder emprego, casa, saúde, reforma, família, o de sofrer a ineficácia das instituições - nos hospitais, nos tribunais, nas escolas, nos partidos, na comunicação social - a que se acrescentam, externamente, ameaças de conflitos nucleares, de nova guerra mundial, de descontrolos climáticos, de subjugação à Inteligência Artificial.
As bíblias (das igrejas, das ideologias, dos pensamentos correctos) são, por sua vez, alfobres de terrores e hipocrisias circundantes. Este medo ganha características novas, próprias da época, isto é de mudança de eras, de culturas, de relacionamentos que atravessamos. A imprevisibilidade desorienta-nos, o amanhã indefine-se, indefine-nos. O único futuro emergente é o da tecnologia (formidável se bem usada) não é, pelo que se perspectiva, o das humanidades, o da equidade, o da cultura, o do mérito, o da esperança.
Ante esse vazio (políticos, intelectuais, artistas, governantes, ninguém apresenta ideias de novos horizontes) as pessoas voltam-se para o passado, puxam por ele, pela solidez das suas normas, pela segurança dos seus conceitos tentando recuperar-lhe crenças e ideologias, sentimentos e virilidades, alienações e acções que restituam a ilusão da harmonia perdida.
Os extremos, à direita e à esquerda ressurgem, consequentemente, irracionais, populistas, beatos, patéticos - fogos fátuos na história por vir . Daí Agostinho da Silva dizer que não temos saudades do passado, mas saudades do futuro, futuro sonhado no passado - e que continua futuro.
Torturados, torturadores

Existe tanta gente a passar fome hoje (hoje, década 20 do século XXI) como existia, avisa a FAO, na mesma década do século XIX. Parece haver, porém, quem não faça perguntas e o negue. Tal como nessa época, ela, a fome volta a ser arma de extermínio.
O humanismo só não soçobrou porque continuam a resistir quem impõe partilha à usurpação, inteligência ao obscurantismo. Não há emprego para toda a vida, ouve-se, mas há estômago, há corpo. Ideologias, instituições, capelas em vez de fomentarem conhecimentos fomentam ficções, crendices, santinhos, para cada aflição, cada regime, insaciáveis em grilhetas e fogueiras, esbulhos e opressões.
Perseguidos passam a perseguidores, torturados a torturadores, colonizados a colonizadores. De mártires no início, grupos emergentes tornam-se, por ascensões várias, verdugos do não sancionado por si, fazendo outros sofrer, multiplicado, o que eles sofreram, impondo regressos de totalitarismos, de esclavagismos, pervertendo liberdades, dignidades, esvaziando vidas, futuros. Não íntegros, líderes perdem credibilidade; não amadas, mulheres sucumbem agredidas; não
considerados, idosos sentem-se desperdícios; não reconhecidos, jovens empacotam-se em fugas avulsas; não apoiados, casais substituem filhos por animais de companhia e bonecos (bebés Reborn?) de aproximação. Povos de democracias antigas agridem migrantes, refugiados, negros, ciganos, velhos, doentes, apátridas, criança, inculcam-lhes a dor de não merecerem existir; países soberanos invadem países soberanos, arrasam cidades, chacinam populações, provocam doenças, geram suicídios e terrorismo. Cientistas falam de novas pandemias causadas por retracções na saúde, na investigação, no crescer da miséria, da desigualdade, da desesperança.Sempre que um ser humano se nega o universo contrai-se, a harmonia rompe-se.
A morte dos assassinados é o princípio da morte dos assassinos. As mudanças de era geram mutações imprevisíveis, como está a acontecer hoje. Salvaguardar a perspectiva disso deverá ser a função da cultura - daí ela ser tão temida pelas forças dominantes. Ainda.



'Jornal de Letras'
Um voo sobre
a nossa cultura
A demolição da cultura, sobretudo da literatura - isto é, do pensamento, da criatvidade, da reflexão - prossegue entre nós, em nós, sob infantilizações e vazios terraplanizadores.Certos responsáveis, em vez de a travar (à demolição), judam à festa por alheamento, por cumplicidade. O que está a acontecer com o JL, Jornal de Letras e Artes, é expressivo disso, ante o alívio de alguns e a hipocrisia de outros.

Concebido, erguido, mantido por José Carlos de Vasconcelos, jornalista e poeta de referência, tornou-se há décadas angular na imprensa cultural unindo, como poucos organismos o têm feito, os povos de língua portuguesa.
Património de afirmação de uma identidade, de um futuro, de um enriquecimento comunitário superior, o JL, lançando voos entre a CPLP e os núcleos da nossa cultura (universitários, académicos, diplomáticos, sociais) no mundial, abriu fios de ligação, de presença incalculáveis, pelo que o seu valor (imaterial) não pode ser aferido em balancetes de deves e haveres contabilisticos.
A literatura de expressão portuguesa (Camões, Vieira, Pessoa, Eça, Brandão, Natála, Saramago, Sena, Graciliano, Nelson Rodrigues, Clarisse Lispector, Bandeira, Jorge Amado, Mia Couto, Pepetela,
Luandino, e tantos, tantos outros) é, em termos de afirmação, mais importante, provocava Agostinho da Silva, do que o vinho do Porto, o volfrâmio ou a dívida pública à Europa.
Fernando Pessoa lembrava que "o primeiro afloramento civiliźacional a projectar Portugal no exterior foi de natureza literária" (Cancioneiro
e crónicas de cavalaria), não foram feitos guerreiros, nem comerciais, nem desportivos. Quanto é que tal vale? Ministérios, secretarias, departamentos, fundações, associações, municípios, bancos, petrolíferas, engrenagens que movem milhões não terão sensibilidade para perceberem a importância deste fabuloso património? Mário Soares, homem de cultura e de boa literatura gostava de repetir: "Ninguém sabe quem foi o primeiro ministro no tempo de Eça de Queiroz,mas toda a gente s abe quem foi Eça de Queiroz!" O JL ajuda a isso.
O abate do jornalismo
Tornou-se moda nos últimos tempos anatemizar, insultar, culpabilizar o jornalismo, ou seja, os que o exercem, os jornalistas, pelos males abatidos sobre nós, repetindo-se uma vez mais o propósito de matar o mensageiro pelas más notícias que ele divulga.
A ilusão de que não se conhecendo as desgraças elas deixam de existir fez - sobretudo na política, na economia, na justiça, na comunicação social, etc. - caminho largo. Consequentemente, os jornalistas passaram a "jornaleiros", as notícias a "lixo", os comentadores a "comentadeiros" os periódicos a "pasquins"; e assim por diante. Adiante.
Em muitos casos, demasiados por certo, isso é, com efeito verdadeiro, mas é-o como consequência, não causa da situação criada, fruto de estratégias ardilosamente concebidas nesse sentido. Por os interesses dos dominadores quase nunca corresponderem aos dos dominados, surgiu a decisão de os poderes controlarem o que se torna público. As ditaduras resolvem-no através de censuras directas, as democracias de manipulações indirectas; as primeiras utilizando repressores, as segundas sedutores.
Assim tem sido – e continua a ser. Ao desaparecimento, com o 25 de Abril, da Censura oficial surgiu (multiplicada pela sua privatização) a censura, sem esse nome, de partidos políticos, de instituições, de administrações, de autarquias, de todo bicho careta com poder, manha e desvergonha. A seguir à Revolução entregou-se um jornal a cada partido (às vezes mais do que um), encheram-se as redacções de comissários políticos , proletarizaram-se os jornalistas

retirando-lhes independência e intervenção (o PS de Sócrates, esse, acabou-lhes com a assistência médica própria), trocaram hierarquias por ideologias, criaram cursos de comunicação (de formatação do correcto), ou seja, perverteu-se a liberdade de criação, de expressão, de isenção, de intervenção.
Para melhor confundir, impôs-se o rótulo de comunicação social à informação, que ninguém sabe exactamente o que é: serão os comboios, os telefones, as auto-estradas? sabe-se, sim, que se assemelha a guarda-chuva (ou guarda-sol) para tapar safadezas da manipulação, da mentira, e inviabilizar a informação credível, confirmada, pluralista, democrática.
Cereja no bolo: a culpa passou, depois, a ser das vítimas, os jornalistas, não os travestis, os sabotadores do jornalismo, da liberdade que os mensageiros dele (jornalismo) necessitam para o cumprir, cumprindo-se. "Tão censurante é impedir de dizer como obrigar a dizer", repetia Natália Correia - e dela nós aqui repetimos.
Edição de 22 a 28 de Setembro sujeita a actualizações diárias (usamos IA e Wikipédia nas pesquisas)
Portugal num futuro ibérico
Com inesperada frontalidade Durão Barroso, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e ex- primeiro ministro, afirmou que Portugal é hoje o país mais pobre da Europa Ocidental, já ultrapassado pelos da antiga União Soviética. Referindo saídas para um possível futuro, preconizou a formação, pelo seu potencial económico e cultural, de uma comunidade de povos ibéricos na qual seriamos motor, não passageiros.

O iberismo que propõe não significaria, assim, a integração de Portugal na Espanha (como preconizaram no passado alguns iberistas), mas a constituição de um bloco de nações ibéricas independentes, como entendiam, entre outros, Fernando Pessoa, Agostinho da Silva e Natália Correia. Esta criaria mesmo o conceito de ibericismo (para se desligar do de iberismo) tendo escrito, a propósito, o notável ensaio Somos todos Hespanos.
A perspectiva agora retomada por Durão Barroso emergiu - vale a pena lembrá-lo - quando, regressado de intensa estadia em Espanha, Agostinho da Silva se encontrou, em Dezembro de 1934, no Martinho da Arcada com Fernando Pessoa. Durante 10 meses, até 27 de Novembro de 1935 (Pessoa morreria dois dias depois), ambos se interessaram a fundo sobre o futuro de Portugal, do seu império e da sua posição internacional.
O autor da Mensagem publicara, entretanto, no Jornal um texto onde afirmava que para o futuro do País as colónias não só não serão precisas para nada como constituirão um forte empecilho. E especificaria que "só as línguas dos povos que criam impérios têm direito ao futuro. Nós criámos civilização, e não simplesmente a vivemos e a exploramos, pois a recriámos pela escrita".
Isso numa altura em que monárquicos e republicanos, situacionistas e opositores, intelectuais e analfabetos eram, na sequência do Ulimatum Inglês, colonialistas. Pessoa só não foi maçado porque, à época, não lhe davam importância. Deu-lha, porém, e decisiva, Agostinho da Silva, sobretudo a partir da sua frase, "A minha pátria é a língua portuguesa". Os dois privilegiariam a importância desse património porque seria ele, perdido o império, a ligar-nos
mutuamente. Radicado no Brasil, ele começa a desenvolver estruturas nesse sentido, apoiado pelos presidentes Juscelino Kubicheck de Oliveira e Jânio Quadros- influenciando líderes africanos como Agostinho Neto,Amílcar Cabral e Eduardo Mondlane. As suas ideias, que incluíam os países de língua espanhola, impressionaram Adriano Moreira, Marcelo Caetano, Franco Nogueira e o próprio Salazar. Numa reacção surpreendente, o Presidente do Conselho gizou um plano para Agostinho da Silva vir secretamente, estava na lista negra da Pide, a Lisboa.
Veio e foi detido no aeroporto. O embaixador Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros, teve de libertá-lo à socapa. O diálogo com o governo tornou-se, porém, inviável pois a essência dessa Comunidade Ibérica exigia a independência das colónias portuguesas e das regiões espanholas .
Após o 25 de Abril, Agostinho da Silva, já radicado entre nós, reformula, seguido pelo presidente José Sarney e pelo embaixador Costa e Silva, do Brasil, o projecto em causa no sentido de fazer evoluir a CPLP, Comunidade de Países de Língua Portuguesa, então criada, para CPLI, Comunidade de Países de Línguas Ibéricas.
Esse bloco será o único, sublinhará Agostinho da Silva, "capaz de ombrear com o asiático (China, Rússia, Índia, Paquistão), com a vantagem de ser muito rico (em minérios, gás, petróleo, diamantes, etc.), muito jovem (a maioria das suas populações africanas e americanas tem menos de 25 anos) e muito criativo - numa altura em que o bloco da URSS implodiu e o da EUA vai no mesmo caminho.
O único político que, então, entendeu o projecto foi António Ramalho Eanes cuja primeira visita oficial como Presidente da República foi a África. No Maputo, Samora Machel, apontando-o aos moçambicanos, dirá: "Camaradas, apresento-vos o nosso antigo patrão!" Inteligente, pretendia dessa maneira indicar, com subtiliza, um futuro a nascer. Os poderes emergentes em Portugal não consideraram esse futuro e, prestes, o trocaram pelo da Comunidade Europeia. Ainda haverá condições para o relançar?
Carros para o povo, a sério?

Parecendo repescar uma ideia do senhor Adolfo (talvez a única boa que ele teve) a presidente Von der Leyen acaba de anunciar o projecto de um carro para o povo, à semelhança do que o Fhuer pretendeu com o amoroso Carocha, concebido por Ferdinand Porsche, veículo barato, fiável, económico, para dois adultos à frente e três crianças atrás - seria o automóvel mais vendido no mundo desde o seu lançamento em 1946 e o seu cancelamento em 2002.
Num assomo de realismo a presidente da Comissão Europeia percebeu o perigo de impor eléctricos por decreto, a prazo, sem condições, sem viabilidade, provocando o risco de falência de uma indústria europeia (com milhares de empregados) e o domínio da China no sector, com total prejuízo das classes baixas, incapazes de comprar carros na ordem dos 20 e tal mil euros, e de os abastecer por inexistência de postos de energia. É insólito, na verdade, apresentar a quem ganha, como no nosso caso, mil e tal euros mensais, automóveis a

preços, a impostos na ordem dos aqui praticados. Os poderes, que esticaram a corda, parecem acordar para um descalabro que a sua arrogância provocou.As exigências estipuladas a níveis de poluição, limites de velocidade, IUCs, selos, taxas, além dos impostos nos combustíveis e nas transacções de veículos, tornaram a sua posse (bem como a sua substituição por eléctricos) insuportável para a maioria dos portugueses. Pelos vistos, também para a de outros europeus. Programa de Automóveis Pequenos e Acessíveis é a proposta da CE agora dirigida às fábricas da especialidade (sugerindo-se energias além da eléctrica), na tentativa de salvar uma das actividades melhor acolhidas, e reconfortantes, no velho continente - e no nosso tão depauperado imaginário. Carros para o povo, a sério?
Quando os retornados
reconstruiram Portugal

Ainda hoje não se sabe ao certo quantos, saídos de Angola, Moçambique, Guiné, S. Tomé e Príncipe, Cabo Verde chegaram, golfados em caudais de espanto e desolação, a Portugal. Algumas estatísticas referem oitocentos mil, outras um milhão. O eco da sua debandada condoeu então o mundo. O velho império português regressava cabisbaixo, naufragado, aos cais de onde, cinco séculos atrás, partira para gestas imorredoiras.
Apontada como fenómeno ímpar de absorção social, a integração dos vindos de África na vida portuguesa tornou-se um caso surpreendente. À desconfiança inicial, por vezes hostilidade com que foram recebidos, sucederam, com frequência, a aceitação, a convivência mútuas.
O exemplo que deram de trabalho, iniciativa, interajuda, depressa lhes granjeou respeito e admirações. Fixados no comércio, na indústria, na agricultura, nos serviços, nas autarquias, nos partidos, nas artes, na imprensa, no Governo, tornaram-se referências de actuação. A maioria veio com a roupa do corpo. Fazendas, fábricas, contas bancárias, aviões, barcos, prédios, milhões de contos ficaram-lhes perdidos para sempre, na sequência das independências dos territórios onde a maior parte nascera, se enraízara, se afirmara.
Isolados ou em grupos chegaram a todo o país e, em pequenas ocupações, a todos os sectores; como novos bandeirantes, colonos uma vez mais, foram para o interior carregando cóleras e pânicos, engenhos e ousadias. O seu desespero foi a sua força. Com algumas ajudas de instituições e de apoios familiares, começaram a fixar-se e a transformar os locais onde se detiveram.

A emigração, a guerra e o exílio tinham, então, despovoado Portugal. Aldeias havia que não tinham sequer um habitante. Era um país a viver das remessas dos emigrantes e dos militares — e da passagem dos turistas. Então repetiram aqui o que faziam lá.
"Lançaram mão de tudo, não trouxeram divisas, como os emigrantes, mas construíram coisas", exclamará Agostinho do Silva. Após a sua chegada a Lisboa recebiam (parte deles) alimentação e assistência; alguns beneficiaram de créditos, subsídios que lhes permitiram reorganizar-se.

foto Alfredo Cunha
Números tornados públicos apontam verbas da ordem dos 56 milhões de contos gastos em aluguer de barcos e aviões, alojamentos, roupas e transportes.
Os funcionários públicos passaram a ser integrados no Quadro Geral de Adidos com 60 por cento do ordenado - os serviços respectivos registaram 47 mil inscritos.
A ajuda prestada não proveio, porém, só do Estado português. Apreciáveis fatias surgiram de outros países que contribuíram com casas, dinheiro, géneros, empregos. A política seguida pelos governos da época esbateu atritos ao polvilhá-los pelo país, tirando-lhes força, instigando-lhes resignação. Os que sofreram mais problemas foram os de segunda geração. "Os pais conseguiram refazer a vida, interessar-se por novas actividades, mas os filhos sofreram grandes inadaptações, sofreram problemas psicológicos muito graves", sublinhará a psiquiatra Gracinda Ribeiro..
Construir casa e montar negócio foi o seu grande projecto lá, como depois cá. A primeira coisa que o português fez em África (no Brasil, na Ásia) foi levantar abrigo, arranjar mulher (branca ou preta, ou mulata, ou índia, ou oriental), abrir balcão, improvisar chuveiro e semear prole.
A maioria era mais qualificada do que a população portuguesa (da chamada metrópole), com "elevada percentagem de cursos médios e superiores, caso de biólogos, agrónomo, especialistas de ciências físico-químicas e pessoal docente", segundo um estudo do Instituto de Estudos Para o Desenvolvimento, coordenado Manuela Silva, o que ocasionou "um aumento geral de mão de obra qualificada em certos sectores, bem como a presença destacada de muitos em lugares de liderança, tanto no plano profissional como no político".
Constituindo uma comunidade predominantemente masculina e jovem (com apenas sete por cento de analfabetos contra 30 por cento da restante população portuguesa), passaram de subvalorizados a sobrevalorizados, tornando-se em certas zonas polos de poderio crescente.
Muitos dos que voltaram de África foram mais "colonizados" do que "colonizadores", deram mais do que receberam, deixaram mais do que trouxeram. Os que, deles, colonizaram, exploraram não estavam entre eles — haviam-se precavido antes. Portugal viu-se, nessa fase, reconstruído pela energia, pelos conhecimentos dos (indevidamente) chamados retornados. Foi há 50 anos, fá-los agora. Agora poderá sê-lo pelos imigrantes?
Edição de 13 a 18 de Outubro sujeita a actualizações diárias
Adoecer na Gare do Oriente

Quem escolheu o modelo da estação da Gare do Oriente, em Lisboa, devia ser condenado a viver nela, todo o ano, todo o tempo da sua existência que, por certo, não seria muito longa.
Meia dúzia de Invernos, de frio, de vento, de constipações viradas pneumonias, e alguns Verões, 38 graus a torrar, sem resguardo, a desidratar, a sofrer insolação seriam suficientes para o despachar e, com um pouco de sorte, escaqueirar aquela tão pretensiosamente elegante, arrogante, inumana estação. Que diferença entre ela e a de Santa Apolónia (tal como a do Rossio, como a de São Bento), sólida, acolhedora, testemunha de acontecimentos marcantes na vida do nosso País, o desembarque do general Humberto Delgado, a recepção a Simone de Oliveira, o regresso de Mário Soares do exílio; nela há história, emoções de partidas e chegadas, memórias de um Portugal em andamento, andamento às vezes parado, às vezes febril, quase sempre, porém, envolvente, marcante.
Milhares, dali, partiram em emigrações de fuga à miséria, para um sonho europeu, França, Alemanha, Luxemburgo, êxodo de décadas, de pungências silenciadas; ali desembarcavam, atordoados pelo feérico da capital, gerações de jovens saídos do interior ásperos de terra e acanhamento; ali golfavam, em década de guerra, mancebos a caminho de Alcântara,
entreposto de vidas em imolação. Outros cais de ferrovias enraizaram em nós - as ternurentas estações de província com os seus belos relógios redondos, as suas palas de protecção, as suas salinhas de espera, os seus guichés de rede, modelo que o Estado Novo repetiu por todo o território (inclusive colónias) património nosso, afectivo, que os autores da Gare do Oriente - e os responsáveis por ela ignoraram, desprezaram.
É pecha de arquitectos sobreporem a estética dos seus projectos à função pública (comodidade dos utentes) a que, quando essa função existe, se deviam, por respeito obrigar.
Infelizmente outras estações (caso de Campanhã) manifestam idêntica indiferença pelos passageiros, sem protecções de intempéries, sem instalações sonoras audíveis, sem sinalizações perceptíveis, sem apoio eficaz aos utilizadores. Os poderes, em Portugal, continuam a ser subservientes com os de cima e despóticos com os de baixo. Não há democracia que os democracie!
in Nova Gente
A Cultura a arder

A depreciação da cultura, isto é, do pensamento, das diferenças, da liberdade, da memória passou, entre nós, da retórica para a acção, do silêncio para o berro, do apagamento para a violência, simbolicamente ostentada no 10 de Junho, o último, num gesto de indivíduos radicalizados contra actores isolados que iam representar uma peça sobre Camões no teatro A Barraca, em Lisboa, atirando o intérprete do autor dos Lusíadas, Adérito Lopes, para o hospital.
Maria do Céu Guerra, uma das nossas maiores actrizes actuais, directora e encenadora do espectáculo (belíssimo!) intitulado "O amor é um fogo que arde sem se ver", classificou os atacantes de neonazis, após o que suspendeu a representação em causa.
A depreciação, à direita e à esquerda, da cultura, do pensamento, da diferença, da liberdade, da memória, crescente entre nós nos últimos tempos, sobretudo em áreas como o teatro e a literatura, fragilizou-as, expondo-as à javardice de hordas envergonhantes do ser português.
Golpear Camões através do seu intérprete (mesmo desconhecendo-o quem o fez) é um sinal alertador da atmosfera que se adensa ante a condescendência colaborante instalada na política, na intelectualidade, na justiça, na democracia.
A cultura começa no comer decente, no habitar seguro, no vestir confortável, no pensar livre, dizia Agostinho da Silva, para ódio dos primatas que polulam entre nós.
Deuses, Pátrias e Famílias

O general Costa Gomes dizia no Botequim que a energia sexual era mais poderosa do que a nuclear. Daí a obsessão dos poderes, todos os poderes, querem controlá-la, sobretudo quando ela foge às normas instituídas - porque quem se liberta sexualmente, amorosamente, liberta-se politicamente, socialmente, culturalmente.
Deus, Pátria e Família foram baias (alguns querem que continuem a ser) de arrebanhamento para os interesses dominantes, pelo que os desalinhados deles (interesses) tornaram-se grupos a anular, a isolar, por quebrarem negócios de subserviência, de produtividade – assentes em mão de obra farta e barata, em carne fresca para canhões e camas, em almas servis para pastoreios e manipulações.
Não se trata, porém, de retirar valores a essa trindade, mas de enriquece-la com mais (outros) deuses, pátrias, famílias. Assim tem sido há séculos e séculos, mercê de controlos de catecismos, de legislações, de educações, de ideologias, de famílias.
As religiões têm, aliás, primado pela perversão da sexualidade, vejam-se as ignomínias da Inquisição católica, da demência islâmica, da catequese pedófila; vejam-se os ataques de alguns partidos aos movimentos LGBTQI e às suas conquistas civilizacionais; atente-se no actual menosprezo dos poderes pela cultura, pela ciência, pela diversidade, apesar de ser através dos criadores delas que a humanidade tem avançado, ora dramaticamente, ora heroicamente, ora humoristicamente. Lembremos que os textos mais revolucionários escritos depois do 25-A entre nós foram de Natália Correia e de Jorge Sena. Este, no Diário Popular, publicou em Agosto
https://youtu.be/V_sQAmzhrdE?si=YPjsBAkRvHU-vvAX
https://youtu.be/XNclIsWlYF4?si=PoPYjy2Q1bvx8LeX
de 1975 uma exortação (que depois fizeram desaparecer da sua obra) à total liberdade no amor, desde que mutuamente consentido, independentemente do sexo, da idade, do número, do parentesco dos amantes.
Na mesma altura, Natália Correia proclamava a libertação do feminino e do masculino que existem simultaneamente nas mulheres e nos homens, pois são essências do ser humano. Mário Cesariny, por sua vez, acrescentava ser a identidade dos portugueses não marialva nem feminista, mas bissexual.
A homofobia, fruto de medos incontidos, atribui ao lóbi que a engulha perigos de degenerescência social, como outros comportamento fazem aos lóbis judaico, negro, maçónico, etc. Quem é injustamente perseguido tenta juntar-se para defender-se, afirmar-se, numa reacção de sobrevivência, de decência.
Edição Novembro sujeita a actualizações diárias
Muita comida, poucos filhos

Reagindo a alarmismos sobre o domínio do velho continente por imigrados do terceiro mundo, através das suas proles, religiões, identidades, o Professor Almerindo Lessa, especialista mundial em gerontologia, desdramatizava sublinhando ser a elevada fecundidade que os caracteriza uma consequência da subnutrição nos seus territórios de origem.
Radicados entre nós, melhorada a alimentação, o número dos seus descendentes baixará (a partir da segunda geração) atenuando-se radicalismos e violências. "Quanto mais comerem menos filhos têm", sintetiza Almerindo Lessa. E justifica: "Quando há falta de determinadas proteínas, as hormonas sexuais não são queimadas pelo fígado, o que provoca grande excitação. Um dos processos de aumentar, por exemplo, a fecundidade de galinhas, de porcos é escassear-lhes a ração.
A natalidade baixou entre nós porque subimos socialmente, a pílula ajudou, ao evoluir-se evita-se procriar. Os descendentes dos imigrantes que nos procuram hoje vão amanhã passar pelo mesmo. O s responsáveis não mostram, porém, disponibilidade para estes problemas, limitados como estão nos seus cargos, nas suas redomas, nas suas filosofias mercantilistas e imediatistas. Julgam que tudo se resolve com dinheiro, com produtividade. Ora o nosso maior problema não é esse, é o da desumanização".
https://youtu.be/UGm3YurTCEw?si=Stt7f8byKGVME50N
Desumanização que leva a populismos, a traficâncias. Daí Almerindo Lessa advertir que muitos dos defensores da entrada livre de estrangeiros movem-se por interesses penumbreos, mão de obra dócil, barata, inesgotável, ao mesmo tempo que incentivam a saída dos jovens nacionais, cinicamente tidos por muito preparados e cosmopolitas, escamoteando serem trabalhadores mais caros, mais interventivos e exigentes.
Vitimizar, enaltecer os imigrantes, como sucede frequentemente, provoca reacções desproporcionadas em alguns deles, sobretudo brasileiros, a acharem-se salvadores dos estados onde se fixam (Portugal não sobreviveria sem o seu trabalho, repete-se), em desvalorização dos naturais - e agudização de racismos, de violências. Curiosamente, alguma esquerda apoia esta versão –e quere-a correcta. "Talvez o problema esteja mais naqueles que saem do País dos que entram nele" sintetizou, em carta aberta a Passos Coelho, Artur Ramos, um jovem estudante impelido a deixar Portugal

Morre-se por falta de amor

Continuamos, hoje, a morrer de amor, de falta dele, a matar por ele como nas novelas românticas do século XIX, lembrava-o Almerindo Lessa, destacado gerontologista português .
O nosso povo é sentimentalmente roxo, a cor do ciúme, da paixão, do desdobramento afectivo. A maior parte de nós tem um amor a que se dedica sensualmente e outro a que se dedica espiritualmente, que quase nunca coincidem. Apesar de divididos, é-nos muito agudo o sentido de posse. A pior coisa para nós é a falta de felicidade. Se não nos sentirmos retribuídos, podemos falecer de angústia.
Daí os idosos choram muito, emocionam-se muito, sofrem muitíssimo com a falta de carinho e com o isolamento. Os quintos andares das grandes cidades estão cheios de velhos esquecidos. Lisboa é um terceiro mundo ao domicílio. Eles sentem-se seres despedidos pela sociedade, pela família, sentem-se inaproveitados, rejeitados, desintegrados economicamente, politicamente, eroticamente. Dizer que não amam, não necessitam de afagos é uma enormidade.
O problema do amor não está tanto na sua afirmação, mas na sua atracção, ou não, na sua reciprocidade, ou não.
A não correspondência nele, na amizade, na lealdade é um drama do ser humano, agudizado por invejas, rejeições, violências; ora comemos com beijos o objecto desejado, ora o imolamos, nos imolamos por ele. Extremadas, as paixões provocam distúrbios físicos, destruições psicológicas, doenças, suicídios, assassínios, massacres, guerras. Jamais se deve entregar a outros a decisão da nossa felicidade.

A maior parte dos crimes de morte ocorridos no País são de natureza passional. O agudizar da violência doméstica, do assassínio de mulheres pelos companheiros, de pais pelos filhos, por exemplo, traduz tremendas faltas de amor.
As instituições existentes não estão preparadas para lidar com idosos, com rejeitados, com solitários, com deficientes, a evolução tecnológica andou mais depressa do que a evolução das mentalidades, cada vez se torna mais urgente uma ecologia da rejeição. Agustina Bessa-Luiz, inesquecível Sibila, repetia que temos a cultura da afectuosidade como outros povos têm a do dinheiro, a do poder, a da tecnologia, insistindo no dize-lo por estarmos em risco de perdê-la – para tragédia nossa.

Edição de 06 a 09 Novembro 2025 sujeita a actualizações diárias
A mitificação de Salazar


No seu modo reticente de ser, Eduardo Lourenço lamentava não ter jeito para a ficção pois gostaria de escrever um romance sobre Salazar, enigmática esfinge do seu tempo. E, de seguida, incentivava-nos a ler, pela "profundidade de pensamento e qualidade de escrita", os seus discursos e artigos.
Críticos do Estado Novo, como Mello e Castro, Baptista-Bastos, Fernando Namora, Natália Correia, David Mourão-Ferreira consideravam, entre outros, o antigo presidente do Conselho "um invulgar ensaísta político". Para se conhecer essa época, anotava Agostinho da Silva, "é avisado estudá-lo, ele não veio de Marte, mas da fundura do País". Foi o governante que mais poder teve, durante mais tempo, na nossa longa história.
Nascido em ambiente de pobreza, na Beira Alta, Salazar influenciou como poucos portugueses o curso do século XX. Convidado a liderar o País, impôs um partido único (a União Nacional), um controle de informações (a Censura), uma vigilância dos cidadãos (a Pide), uma religião oficiosa (em que deixou de acreditar), um paternalismo circunstancial (de solteirão), uma modéstia de escala: "A mania das grandezas prejudica todas as nossas iniciativas", justificava.
A sua projecção internacional deu-se ao conseguir a neutralidade de Portugal e Espanha na Segunda Guerra Mundial. O apoio de Franco, a anuência da Grã-Bretanha, a importância geoestratégica dos Açores, a qualidade do nosso volfrâmio, a habilidade da sua diplomacia e a desistência de Hitler em invadir a Península Ibérica pesaram no êxito dessa estratégia.
A ditadura portuguesa seria, na Europa de então, a única que não era de militares, mas de professores universitários. Um dos objectivos mais curiosos conseguidos por ele foi o da construção do seu mito pessoal. Perspicaz encenador do teatro político (era atento a Amélia Rey-Colaço), ergueu esse mito pela distância, pelo silêncio, numa inacessibilidade geradora de temor, de mistério, de abstracção – maneira dificílima de ser em ausência.


Quase nunca utilizou a televisão e, com a rádio, foi parco no fazê-lo. Cumprimentava tirando o chapéu para não apertar mãos a outros. Durante muito tempo hesitou em deixar-se entrevistar por António Ferro; as raras entrevistas que concedeu foram-no, aliás, a jornais estrangeiros que os portugueses, depois, transcreviam; a única biografia em que colaborou (excelente, por sinal) pertenceu a uma francesa, a sofisticada jornalista e escritora Christine Garnier.
Meio Fascismo ou Fascismo em segunda mão?
Eduardo Lourenço perturbaria a inteligência instituída ao insinuar no livro O Fascismo Nunca Existiu que ele, fascismo, existiu em negação, através de um autoritarismo enfático e burocrático - ideia subscrita por, entre outros, Mário Soares, Sá Carneiro, Sottomayor Cardia, Henrique de Barros.
Eduardo Lourenço acrescentava, entretanto, não ter sido o Estado Novo a inculcar, como se propalava, o terror fascizante entre nós, mas a Inquisição, anterior a ele e mais grave, muitíssimo mais grave do que ele. O Santo Ofício (da Igreja Católica) lançou, na verdade, o desígnio de, pelo fogo, pela tortura, pelo assassínio, pela demência, arrancar-nos a alma (original) e substituí-la por pias bentas, castradoras de liberdades, de dignidades.
Séculos, gerações, culturas, ideologias de medo, de submissão, de perseguição fizeram o que somos, infantilizando-nos, adoecendo-nos a tal ponto que os regimes de democracia não foram capazes de resgatar-nos. Ainda. "Mesmo os que se julgam muito progressistas continuam a trazer dentro de si um fanático e um beato", prevenia Antero de Quental. De idêntico aceramento, Jorge de Sena anotava ter-se "o fascismo português acantonado na burocracia e na sacristia", "não parecendo haver revolução que o elimine". Ainda.
Admitindo não ter existido um verdadeiro fascismo - quando muito tivemos, segundo alguns, um meio fascismo, um fascismo em segunda mão, um fascismo turístico na expressão de Natália Correia - suportamos, no entanto, um autoritarismo concreto, duro, condicionador do desenvolvimento mental, económico, cívico do país. Salazar justificava a rigidez da austeridade afirmando que "desenvolvimento não significa só por si progresso, podendo significar o contrário, enriquecimento de minorias e empobrecimento de maiorias, maiores fossos e injustiças sociais, indiferentemente dos regimes existente".

Repudiando a democracia (nivela tudo por baixo), recusando o socialismo (anula o indivíduo), distanciando o capitalismo (torna o homem um meio, não um fim), ele tentou uma terceira via, a do corporativismo, apoiada na pequena propriedade, no campo (com excepção do Alentejo), e no pequeno comércio (familiar, de bairro) nas cidades. A indústria e o operariado ficavam em cinturas convenientemente vigiadas.
Salazar fascinado por António Ferro
Durante algum tempo Salazar interessa-se pela política de Mussolini - muito por influência de Ferro, que o entrevistara - mas logo a afasta, enfadado com o seu exibicionismo. A célebre foto (autografada) do Duce, que esteve na sua secretária durante um mês, seria levada por D. Maria, a irascível guardiã de São Bento, para a cave do edifício.
Nacionalista e cosmopolita, memorialista e futurista, António Ferro conciliou capacidades invulgares de organização e criação, sendo dele algum do charme, na fase inicial, do Estado Novo. O presidente do Conselho utilizou-o e fingiu deixar-se utilizar por ele enquanto lhe interessou. Ferro tinha o mundo, a desenvoltura, a vitalidade, a criatividade que ele, Salazar, não tinha – e isso fascinava-o, incomodava-o.
Portugal conhece nessa época vultos cimeiros da cultura, generosamente apoiados por António Ferro sem discriminações ideológicas, religiosas, culturais, sexuais. Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Pascoaes, Amália, Vieira da Silva, António Botto, Sá-Carneiro, Sarah Afonso, António Lopes Ribeiro, Amélia Rey-Colaço, Guilhermina Suggia, Bernardo Marques, Maria Keil, José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, e outros, constituem uma plêiade de excepcionais como jamais voltou a haver.
A indecência dos painéis de Almada
Perspicaz, o chefe do Governo não interferiu. Fernanda de Castro, notável poetisa (mulher de António Ferro) contava-nos que em certa ocasião Salazar, consciente das suas limitações em questões de arte moderna, pediu a Ferro que fosse à Gare de Conde Óbidos ver o que Almada estava lá a pintar pois Duarte Pacheco, indignado, havia-lhe dito que eram uma indecência os seus painéis, devendo ser destruídos. Ferro foi,
viu, regressou e disse, "são uma obra-prima". "Então que fiquem", determinou Salazar. Ficaram.
Salazar castigou Aristides
De porte aristocrático, Salazar não era propriamente um mundano (detestava multidões), um racista (entre os seus melhores amigos figurava o médico moçambicano Manuel Nazaré), um beato (perdeu a fé aos 25 anos, não se confessava, não sublinhava Fátima), um misógino (rodeou-se sempre de mulheres apesar de permitir a sua secundarização), um homofóbico (trabalhou e conviveu com homossexuais, embora não impedisse a sua discriminação), um anti-semita (acolheu milhares de judeus em Portugal mas, com receio de Hitler, castigou Aristides de Sousa Mendes), não era ingénuo, nem optimista, nem alegre – tinha dos olhares mais tristes que vi até hoje.
A modéstia fez-se-lhe orgulho, a inacessibilidade trono. Querendo um adversário à altura, dilatou Álvaro Cunhal; necessitando de um inimigo para unir os seus, ensanguentou o Partido Comunista. "O poder pessoal tem seduções a que é difícil resistir", reconhecerá.

Possuía um sentido de humor subtil, próprio dos muito inteligentes. Manuel Nazaré gostava de, dele, contar: Numa tarde de Agosto, no Forte de Santo António do Estoril, recebeu um ministro a quem entregou, ao sentarem-se, uma manta de lã. Surpreendido, o visado exclamou, obrigado senhor presidente, mas não é preciso, está até muito calor! Sibilino, Salazar respondeu-lhe, aceite, aceite que quando ouvir o que tenho para dizer-lhe vai ficar gelado.
Em São Bento, procurado pelo criador do Instituto Português do Cancro, actual Instituto Português de Oncologia, seu adversário político em risco de ser substituído, Salazar, depois de ouvi-lo, assegura-lhe, esteja descansado pois enquanto eu estivar no poder ninguém lhe toca, agora quando forem os seus correligionários a mandar, não sei.
A visão de uma 3ª Guerra mundial
As manchas negras do Estado Novo situam-se na repressão das ideias, da criatividade, da liberdade de expressão, no campo do Tarrafal, no forte de Peniche, no presídio de Caxias, nos curros do Aljube, nos tribunais plenários (as medidas de segurança podiam significar prisão perpétua), na Pide, na Censura Prévia, na intransigência ultramarina, mecanismos de perseguição e anulação enviesados pelos pequenos poderes dos pequenos servidores do regime.
Quando perguntado porque mantinha, sem saída, o conflito africano, justificava dizendo ir dar se na década de 60 uma terceira guerra mundial, aniquiladora da União Soviética e dos Estados Unidos, da qual surgiria uma nova ordem internacional favorável a Portugal e ao seu império. Esteve, com a crise dos mísseis de Cuba, para acontecer. Não tendo ocorrido, passou a argumentar (revelar-me-iam os generais Costa Gomes e Kaúlza de Arriaga, e os embaixadores Franco Nogueira e António Leite Faria) que o bloco soviético, era uma questão de esperar, implodiria em breve - implodiu três décadas depois.
Conversando com Manuel Nazaré, pergunta-lhe, "acha que eu sou muito reaccionário, e fascista?" Gozão, o médico atira-lhe, "os seus inimigos acham que sim, e coisas muito piores". Salazar entupiu. Depois exclamou: "Penso que não sou, o que se passa é que os portugueses são, na sua maioria, reaccionários, alguns mesmo fascistas. Ora eu tenho de governar para eles, e com eles. Se o não fizer mudam-me. Não mudaram. Mudado foi António Ferro. A ideia de Portugal que ambicionava divergia da do presidente do Conselho pelo que, na sequência da guerra fria, ficou sem espaço. Sonhador, chegara a pensar, "talvez haja poesia na rima clara e sonora das contas certas". Viu-se.

António Salazar e o Presidente dos EUA Eisenhower

António Salazar e a Rainha Isabel II
Os labirintos de Salazar segundo E. Lourenço
A maioria dos artistas "não defendia, directamente, a cultura do Estado Novo, defendia a cultura do País, mas para o fazer não podia hostilizar o regime", sintetizava-nos António Quadros, um dos grandes vultos da moderna filosofia portuguesa, filho de António Ferro e Fernanda de Castro.
Salazar moveu-se sempre, como Eduardo Lourenço assinalou, em labirintos: o da vida pessoal, o da situação do país, o dos ataques da oposição, o da duplicidade da Igreja, o da arrogância das potências internacionais, o dos conflitos coloniais. Uma guerra o distinguiu, a Segunda Mundial, uma guerra o diluiu, a de África. "Não quero imaginar a confusão em que isto vai ficar quando eu desaparecer", desabafava no final da vida. "Temo mesmo que Portugal, como outros países, possa desaparecer no próximo século".
Portugal num futuro ibérico
Com inesperada frontalidade Durão Barroso, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e ex- primeiro ministro, afirmou que Portugal é hoje o país mais pobre da Europa Ocidental, já ultrapassado pelos da antiga União Soviética.
Referindo saídas para um possível futuro, preconizou a formação, pelo seu potencial económico e cultural, de uma comunidade de povos ibéricos na qual seriamos motor, não passageiros.

O iberismo que propõe não significaria, assim, a integração de Portugal na Espanha (como preconizaram no passado alguns iberistas), mas a constituição de um bloco de nações ibéricas independentes, como entendiam, entre outros, Fernando Pessoa, Agostinho da Silva e Natália Correia.
Esta criaria mesmo o conceito de ibericismo (para se desligar do de iberismo) tendo escrito, a propósito, o notável ensaio Somos todos Hespanos. A perspectiva agora retomada por Durão Barroso emergiu - vale a pena lembrá-lo - quando, regressado de intensa estadia em Espanha, Agostinho da Silva se encontrou, em Dezembro de 1934, no Martinho da Arcada com Fernando Pessoa.
Durante 10 meses, até 27 de Novembro de 1935 (Pessoa morreria dois dias depois), ambos se interessaram a fundo sobre o futuro de Portugal, do seu império e da sua posição internacional.
O autor da Mensagem publicara, entretanto, no Jornal um texto onde afirmava que para o futuro do País as colónias não só não serão precisas para nada como constituirão um forte empecilho.
E especificaria que "só as línguas dos povos que criam impérios têm direito ao futuro. Nós criámos civilização, e não simplesmente a vivemos e a exploramos, pois a recriámos pela escrita".isso numa altura em que monárquicos e republicanos, situacionistas e opositores, intelectuais e analfabetos eram, na sequência do Ulimatum Inglês, colonialistas. Pessoa só não foi maçado porque, à época, não lhe davam importância.
Deu-lha, porém, e decisiva, Agostinho da Silva, sobretudo a partir da sua frase, "A minha pátria é a língua portuguesa". Os dois privilegiariam a importância desse património porque seria ele, perdido o império, a ligar-nos
mutuamente. Radicado no Brasil, ele começa a desenvolver estruturas nesse sentido, apoiado pelos presidentes Juscelino Kubicheck de Oliveira e Jânio Quadros- influenciando líderes africanos como Agostinho Neto,Amílcar Cabral e Eduardo Mondlane. As suas ideias, que incluíam os países de língua espanhola, impressionaram Adriano Moreira, Marcelo Caetano, Franco Nogueira e o próprio Salazar. Numa reacção surpreendente, o Presidente do Conselho gizou um plano para Agostinho da Silva vir secretamente, estava na lista negra da Pide, a Lisboa.
Veio e foi detido no aeroporto. O embaixador Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros, teve de libertá-lo à socapa. O diálogo com o governo tornou-se, porém, inviável pois a essência dessa Comunidade Ibérica exigia a independência das colónias portuguesas e das regiões espanholas .
Após o 25 de Abril, Agostinho da Silva, já radicado entre nós, reformula, seguido pelo presidente José Sarney e pelo embaixador Costa e Silva, do Brasil, o projecto em causa no sentido de fazer evoluir a CPLP, Comunidade de Países de Língua Portuguesa, então criada, para CPLI, Comunidade de Países de Línguas Ibéricas.
Esse bloco será o único, sublinhará Agostinho da Silva, "capaz de ombrear com o asiático (China, Rússia, Índia, Paquistão), com a vantagem de ser muito rico (em minérios, gás, petróleo, diamantes, etc.), muito jovem (a maioria das suas populações africanas e americanas tem menos de 25 anos) e muito criativo - numa altura em que o bloco da URSS implodiu e o da EUA vai no mesmo caminho.
O único político que, então, entendeu o projecto foi António Ramalho Eanes cuja primeira visita oficial como Presidente da República foi a África. No Maputo, Samora Machel, apontando-o aos moçambicanos, dirá: "Camaradas, apresento-vos o nosso antigo patrão!" Inteligente, pretendia dessa maneira indicar, com subtiliza, um futuro a nascer. Os poderes emergentes em Portugal não consideraram esse futuro e, prestes, o trocaram pelo da Comunidade Europeia. Ainda haverá condições para o relançar?
A tecnologia serve-se fria

A tecnologia está a tornar-se um sofá para preguiçosos. À distância de um clique e ela, em segundos, ajuda a resolver problemas que, de outra maneira, implicavam maçadas em investigação, em contactos, em deslocações, em burocracias e enfados afins.
O peso das enciclopédias e dicionários, o atabalhoamento dos recortes e arquivos, a falta de espaço, de tempo, de pachorra para a procura no papel, volatilizam-se em instantâneos passes de mágica - de passividade. Tabuadas, gramáticas, cálculos, leituras, pesquisas, raciocínios (uff!) estão a ficar, por fora de moda e de status, nos caixotes da inutilidade.
Dando-nos o privilégio de não ter de pensar (excessivamente), a tecnologia - não por culpa sua, mas de quem a manipula - evita-nos estados incómodos e inquietações transcendentes, isto é, dá-nos a felicidade de não necessitarmos de ser (muito) racionais, ou seja, excessivamente humanos.
O Instituto Nacional de Saúde da França acaba de, a propósito, divulgar estarem já muitos jovens a revelar-se, por influência das tecnologias, "menos inteligentes do que as gerações anteriores", fenómeno "nunca ocorrido na história da humanidade", ou seja, desde as cavernas até hoje, desde Adão até Trump.
A dependência que eles criam das redes sociais torna-os intelectualmente, afectivamente mais amorfos, com capacidades diminuídas de evolução, de afirmação.A visão que revelam das coisas é esquizofrénica devido ao bombardeamento de imagens, o seu zapping provoca devastações no equilíbrio mental, pois o cérebro não
consegue integrar as informações recebidas, provocando-lhes alheamentos geradores de comportamos como os dos analfabetos, isto é, o interpretar o que se vê sem compreender.
Confunde-se a realidade com a ficção, numa espécie de alucinação que provoca o que se chama ´pele de elefante`, o endurecimento da sensibilidade com consequências nos relacionamentos pessoais. Estudos do MIT anotam que o ChatGPT, por exemplo, torna o cérebro mais preguiçoso pois baixa a nossa envolvência no que fazemos, bem como a nossa capacidade crítica e criativa.
"Somos mais rápidos 60 por cento no que fazemos, mas com menos 30 por cento de intervenção mental e de utilização da memória. Os mais atingidos são os filhos de classes dominantes - precisamente os que irão ocupar funções decisoras na política, na economia, na cultura, na vida pública, levando sociólogos a dizer que a pior estupidez não é a dos (subalternizados) ignorantes mas a dos (pretensiosos) intelectuais - uma estupidez contente, arrogante, elegante.
Indivíduos que retiram espaço aos das classes desfavorecidas, não por serem mais inteligentes e criativos, mas por deterem o controle da ascensão social. A Inteligência Artificial tem a vantagem de, afiançam os seus defensores, desconhecer esse fosso. O ideal será actuar-se com as nossas próprias capacidades e, em complemento, utilizar a IA. Como em quase tudo, a disfunção não está nela, IA, mas na maneira como é utilizada. A tecnologia serve-se fria
Edição de 24 a 30 de Novembro 2025 sujeita a actualizações diárias
Eanes, a decência na política

Ramalho Eanes esteve para ser, em vez de Otelo Saraiva de Carvalho, o líder do 25 de Abril se, na altura, não se encontrasse no norte de Angola. Regressado a Lisboa é incumbido de presidir à Comissão ad hoc para a Imprensa, instituída a seguir ao derrube da Censura Prévia.
De início enfrenta generalizadas desconfianças dos jornalistas dada a rigidez da sua figura, o que levou alguns a tomá-lo por censor dos capitães. Será Natália Correia, pela sua perspicácia, das primeiras pessoas a desfazer publicamente tal equívoco.
Transita, pouco depois, para a presidência da RTP e chama Vitorino Nemésio, saneado por comunistas da estação, para retomar o "Se bem me lembro", popularíssimo programa do Professor. Promove a criação – porque Portugal precisava de rir – do duo Senhor Feliz e Senhor Contente. As intrigas à sua volta tornam-se, no entanto, de tal maneira abjectas que bate com a porta e sai. Vitorino Nemésio volta a ser saneado.
A Ramalho Eanes se deve, a partir daí, a estratégia que, consubstanciada no Documento dos Nove, gerou o 25 de Novembro de 1975, acção militar decisiva para a democracia no País. Com Vasco Lourenço, Melo Antunes, Loureiro dos Santos, Jaime Neves, Pézarat Correia e, sobretudo Costa Gomes, entre outros, evita a guerra civil. Ao faze-lo arriscou, se falhasse, ser preso e fuzilado.


Promovido a general, é eleito a 27 de Junho de 1976 chefe de Estado com 61,5 por cento de votos tornando-se, aos 41 anos, o mais jovem, mais grave, mais importante Presidente da República – mais importante, dadas as circunstâncias vigentes no pós Revolução de Abril.
De repente vê-se catapultado de oficial de Infantaria para presidente da República e presidente do Conselho da Revolução, liderando um País fracturado a braços com a perda do império, a integração dos (impropriamente chamados) retornados, a paralisia económica, as hostilidades do capitalismo e do comunismo nacionais e internacionais.

É hercúlea a acção que desenvolve: despartiriza as Forças Armadas, extingue o Conselho da Revolução, apoia a cultura, a justiça, a solidariedade, percebe a importância da lusofonia, a delicadeza da CEE e dos tratados internacionais.
Em Belém, a sua actuação surpreende pela austeridade, pelo rigor impostos. As refeições vêm da cantina do quartel da Ajuda, nos restaurantes paga a despesa do seu bolso, os carros oficiais só circulam em serviço, as deslocações de Estado são feitas em cargueiros da Força Aérea.
Por insuficiência de verbas vende um apartamento que a mulher, Manuela Eanes, tem na Caparica a fim de aguentar despesas da presidência.A sua postura leva-o a ser "olhado por alguns como um perigo, uma ameaça", palavras suas, e "detestado por outros por motivos pessoais, por antipatia, por preconceitos, porque eu a certa altura resolvi ajudar a fazer um partido político que era um pouco um anti partido".
Muitos são os que ou o idolatram ou o depreciam. Não recua, porém, mesmo que outros sejam afectados. "É verdade, deixei cair muitos amigos, pois tentei sempre que o exercício da função tivesse apenas a ver com os imperativos da função, não com as amizades, não com as relações familiares. Nunca tive na Presidência da República nenhum familiar meu. E alguns tinham habilitações e gosto em estar lá".
Os piores momentos da sua vida foram os que mediaram entre a entrada e a saída do PRD. "O poder é uma ficção", uma "encenação", comenta, "vivi um período em que tinha o poder formal mas não tinha o poder real , em 1980, antes de ser reeleito, quando os partidos e os políticos me hostilizaram."

António Ramalho Eanes é um homem de extrema afabilidade, disponibilidade para com os outros, as ideias, as situações dos outros: "É necessário que a solidariedade seja encarada de outra maneira. Se os desempregados, os excedentarizados não forem assistidos vamos ter aumentos de suicídios, de violências. Deixada a presidência, tira na Universidade de Navarra o curso de Filosofia de Acção Directiva, recusa o bastão de Marechal, não aceita receber um milhão e 300 mil euros que os tribunais lhe atribuem por sonegação de direitos de um governo socialista,
recusa 100 mil euros de um prémio de prestígio, escusa um convite para ingressar na Academia de Ciências de Lisboa bem como outas honrarias e homenagens. "Abril ofereceu as liberdades mas esqueceu-se de criar cidadão!", exclama.
"Se houvesse uma ameaça gravíssima que pusesse em perigo a sobrevivência de Portugal, quem era a figura moral em quem confiava para nos defender?", perguntava-se numa sondagem. Oitenta (80) por cento dos inquiridos respondeu: Ramalho Eanes.






















